REGULAMENTAÇÃO

Governo pede prorrogação ao STJ sobre o cultivo de cannabis medicinal

União e Anvisa alegam necessidade de ampliar debate com sociedade antes de regulamentar plantio para fins medicinais. Sem norma publicada, país segue dependente da importação, o que encarece medicamentos à base de cannabis

Cannabis -  (crédito: Freepik)
Cannabis - (crédito: Freepik)

A Advocacia-Geral da União (AGU) solicitou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a prorrogação de 180 dias para a regulamentação do plantio de cannabis industrial para fins exclusivamente medicinais e farmacêuticos. O prazo para a decisão foi encerrado nesta terça-feira (30/9), quando o órgão solicitou uma prorrogação à ministra Regina Helena Costa, responsável por acompanhar o tema.

O prazo estabelecido pelo STJ, definido em novembro de 2024, solicita à União e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a publicação da norma autorizando a importação de sementes, o cultivo e a comercialização da planta para uso medicinal.

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Segundo a AGU, a prorrogação é necessária para ampliar o diálogo com a sociedade e com os setores envolvidos, para garantir uma regulamentação “efetiva, segura e abrangente”. A instituição argumenta que o tema envolve grande complexidade técnica, além de impactos sociais e econômicos relevantes, o que demanda maior tempo de análise.

“O objetivo é discutir as soluções com pacientes, especialistas, associações, instituições científicas e representantes do setor regulado, de modo a elaborar uma norma capaz de atender às necessidades de saúde sem abrir espaço para distorções”, destacou a AGU em comunicado oficial. 

Novo cronograma

No pedido, o governo propôs um cronograma dividido em quatro etapas a serem cumpridas ao longo de seis meses. As etapas devem conter a participação popular, com consultas públicas e oitiva da sociedade civil; análise das contribuições, com a sistematização de dados e informações recebidas; elaboração de documentos, minuta de regulamento e estudos técnicos e edição da norma final, publicação do ato normativo pela União e pela Anvisa.

Esse novo planejamento dá continuidade ao plano de ação para regulação e fiscalização do acesso a tratamentos à base de cannabis, entregue em maio ao STJ. O documento já havia sido elaborado a partir da articulação de diferentes órgãos do Executivo e de consultas a especialistas.

A determinação para regulamentar o cultivo de cannabis medicinal foi tomada pelo STJ em novembro de 2024. Na ocasião, a Corte autorizou a produção no país exclusivamente para fins médicos e farmacêuticos, concedendo um prazo de 10 meses para que a União e a Anvisa definissem as regras.

Em nota ao Correio, o STJ afirmou que a ministra Regina Helena apreciará as manifestações apresentadas pelas partes e, oportunamente, proferirá decisão que será publicada no DJe.

Sem a norma publicada, o Brasil segue dependente da importação de matéria-prima, o que eleva o custo dos medicamentos e restringe o acesso. Desde 2015, a Anvisa autoriza a importação de produtos derivados de cannabis com prescrição médica e, a partir de 2019, regulamentou a venda de medicamentos no país, ainda com insumos vindos do exterior.

Estima-se que mais de 670 mil brasileiros utilizam fármacos à base de cannabis no tratamento de doenças como esclerose múltipla, epilepsia refratária e dor crônica. Diversos estudos científicos apontam a eficácia do composto no controle de sintomas resistentes a terapias convencionais, melhorando significativamente a qualidade de vida dos pacientes.

Apesar disso, boa parte do acesso ocorre por meio da Justiça. O Ministério da Saúde informou que, desde 2022, já cumpriu cerca de 820 decisões judiciais que obrigavam a oferta desses medicamentos. Em alguns casos, pacientes e até associações conseguem autorização judicial para cultivo restrito ao uso medicinal.

O que diz o especialista

De acordo com Gustavo Swenson Caetano, especialista da área de Life Sciences e Saúde do escritório Mattos Filho, ainda há entraves que precisam ser solucionados para que a prática seja autorizada com segurança. Segundo o advogado, um dos principais pontos em aberto é a definição de limites de concentração da substância psicoativa da planta. “É fundamental estabelecer limites claros de percentual de THC e métodos de controle desses níveis, sob risco de expor produtores a enquadramento na Lei de Drogas”, afirma.

Ele destaca ainda a necessidade de critérios sobre locais autorizados para o cultivo, medidas de segurança adequadas e a definição da autoridade responsável pelo processo de licenciamento, hoje em disputa entre a Anvisa e o Ministério da Agricultura. “Também é essencial criar regras de fiscalização, renovação de autorizações e garantir padrões de qualidade e rastreabilidade dos produtos”, completa.

A ausência de regulamentação, segundo Caetano, afeta diretamente os pacientes que dependem dos medicamentos. “O principal impacto é a dificuldade de acesso e o aumento da desigualdade entre diferentes camadas sociais”, explica. Como o cultivo nacional não é permitido, os insumos precisam ser importados, o que eleva os custos e restringe o acesso, especialmente entre usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Na prática, muitos pacientes recorrem à Justiça para obter o tratamento. “Esse caminho judicial acaba favorecendo quem tem mais recursos financeiros, seja para custear um processo ou para comprar diretamente os produtos no mercado privado”, acrescenta.

Os efeitos também se estendem à pesquisa e à economia. “A dependência de insumos importados encarece pesquisas, dificulta a inovação e torna o país vulnerável a variações cambiais, barreiras comerciais e problemas logísticos. Isso pode comprometer a continuidade do tratamento de pacientes e atrasar o desenvolvimento científico”, alerta.

Para o especialista, a judicialização crescente sobrecarrega o Judiciário e mostra a urgência de uma regulamentação mais clara. “Uma lei bem estruturada reduziria desigualdades, daria mais segurança para pacientes e empresas e permitiria que o Brasil avançasse em pesquisa e produção nacional”, conclui.

 

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postado em 01/10/2025 15:56 / atualizado em 03/10/2025 12:34
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