CAMINHOS DO NASCIMENTO

Vias urbanas como sala de parto: como o trânsito redefine nascimentos

Só no Distrito Federal, mais de 5 mil crianças nasceram fora do ambiente hospitalar com o auxílio das equipes do Corpo de Bombeiros nos últimos sete anos. No país, a Associação Nacional de Registradores de Pessoas Naturais registrou 88 mil bebês que nasceram longe de maternidades em 2024

O nascimento de um bebê é um momento marcante que, na maioria das vezes, está envolto em afeto e muito planejamento. A organização, no entanto, pode ser redefinida em função do tempo, do trânsito e da mobilidade urbana como um todo. 

Em alguns casos, o tempo do deslocamento é maior que a duração do trabalho de parto e as crianças nascem no caminho. Em ruas, avenidas e rodovias, seja no carro da família, de aplicativo, no ônibus ou até mesmo em uma viatura policial.

Segundo a Associação Nacional de Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), 88.251 crianças que nasceram fora do ambiente hospitalar foram registradas em 2024 e, neste ano de 2025, que ainda está na metade, já são 55.556 crianças registradas nessa condição. 

Em geral, nascer em trânsito não é um ato planejado, mas uma consequência de distâncias, evoluções de parto muito rápidas ou falta de assistência no momento adequado. Ainda que apresente riscos à mãe e ao bebê, o fato pode ser uma aventura inesquecível, que será relatada por toda a vida.

A professora brasiliense Larine Pires, que mora em Taguatinga, no Distrito Federal, teve o segundo filho, em 2022, dentro do carro da família no meio da Estrada Parque Taguatinga (EPTG). Ela começou sentir as contrações de madrugada e, de manhã, resolveu ir para o hospital, que ficava a cerca de 18km de casa. No primeiro filho, o trabalho de parto dela foi prolongado, por isso, ela achou que o segundo bebê também demoraria a nascer, mas, nas primeiras horas da manhã de uma quarta-feira, 21 de abril, Ismael nasceu, aos nove meses, a caminho da maternidade.

 

Arquivo Pessoal - Ismael, filho da professora Larine Pires, nasceu na EPTG a caminho da maternidade

"A gente encostou perto de uma parada de ônibus. E foi aí que o Ismael nasceu, a minha doula, que estava no carro dela vindo atrás, veio, deu uma olhada, embalou ele. [...] E aí a gente viu que estava tudo bem, ele estava no meu colo, ficou aquecido e a gente foi para a maternidade. Chegamos lá, a minha médica já estava esperando ali na porta do hospital. Ela deu uma avaliada, estava tudo bem e cortou o cordão umbilical e aí foi quando ele saiu, Ismael saiu do carro e depois eu saí do carro. Aí, o registro de nascimento dele ficou com o local de EPTG”, detalhou Larine ao Correio.

Material cedido ao Correio - Certidão consta EPTG como local de nascimento


Nascimento em trânsito, no Marco Zero de Brasília

No mesmo ano, um outro nascimento marcou a capital federal. A veterinária Joanna Macedo saiu do Setor de Mansões do Lago Norte para chegar a uma casa de parto na Asa Sul. O trajeto, de 28km, foi percorrido várias vezes durante as consultas de pré-natal e levaram entre 30 e 40 minutos. Mas, naquele 23 de setembro de 2022, um acidente com vazamento de óleo na pista gerou um atraso maior que o previsto. O fato que, a princípio era considerado um obstáculo, se tornou também um marco na trajetória da família e de Brasília. Tomás nasceu no carro, no Buraco do Tatu, a poucos metros do Marco Zero da capital, com auxílio de uma equipe do Corpo de Bombeiros que, inicialmente, atuava na limpeza da pista.

Material cedido ao Correio - Certidão consta Buraco do Tatu como local de nascimento

O pai da criança, o designer Pedro João Almeida Borges, dirigia o carro da família com a máxima velocidade possível quando, no final da Asa Norte, percebeu o trânsito parado. Ao lado dele, no banco da frente, estava Joanna, que — àquela altura — já tinha se dado conta de que não seria possível chegar até o local previsto para o nascimento. Ela avisou ao pai que não havia mais tempo e que ele precisava estacionar, mas o motorista não tinha alternativas. Ao avistar um carro de polícia ultrapassando todos os carros — e dada a urgência da situação —, ele pegou o vácuo da patrulha e seguiu em frente. Ao se aproximar de um veículo dos bombeiros, foi repreendido por um agente em função da infração de trânsito, mas gritou instantaneamente: “É parto! É parto!”.

Após o anúncio, as condutas foram revisadas e a equipe do Corpo de Bombeiros se mobilizou para verificar o caso e proceder o atendimento da melhor forma possível.

“Foi engraçado. A equipe estava com as mãos sujas porque estava mexendo com terra. Mas, na mesma hora, se limparam, colocaram as luvas e disseram: 'Pode deixar, a gente sabe o que fazer'. Foi uma reação imediata e serena também. No momento, que vi um caminhão de bombeiros parado no horizonte, mirei o norte e falei é ali, estacionei e atrás e falei daqui eu não saio”, relembrou em entrevista ao Correio.

O sargento Hartmann, que já tinha experiência na realização de partos, verificou o avanço do trabalho de parto e confirmou o que a mãe já suspeitava. Não havia tempo de chegar a um hospital, e o bebê nasceria ali mesmo. Joanna conseguiu realizar o parto e recebeu o filho, Tomás, sentada no banco dianteiro do carro da família.

“O Tomás nasceu, eu mesma peguei ele, e a gente descobriu que era um menino. Ele ficou ali ao meu lado e, para mim, o mundo parou. Era só eu e meu bebê, e aquela tentativa de colocá-lo em contato comigo, de aquecê-lo e tudo. O Hartmann deu uma olhada nele”, explicou Joanna. “Ele saiu, não chorou inicialmente, eu falei para segurar ele de lado, aí ele chorou, e ficou tudo bem”, emendou o sargento.

Joanna conta que a distância entre a residência dela e a casa de parto onde o nascimento de Tomás era planejado foi uma questão de preocupação durante o pré-natal, mas a rápida evolução do trabalho de nascimento e o trânsito parado no meio do caminho não estavam no roteiro. Por outro lado, ela afirma que a preparação que recebeu da equipe que a acompanhou durante a gestação e a técnica com empatia no socorro realizado fizeram total diferença.

Sem que ninguém soubesse até aquele momento, a equipe que acompanhou Joanna no pré-natal foi a mesma que atendeu à mulher do sargento Hartmann durante as duas gestações dela. Com isso, Joanna sentiu ainda mais confiança e identificou que se tratava de um encontro especial.

https://www.correiobraziliense.com.br/webstories/2025/08/7219876-a-ilha-onde-e-proibido-nascer.html

“No momento que ele se aproximou, eu olhei aquela terra e eu vi monstros do pântano chegando para pegar meu bebê e eu não queria isso. E quando ele pegou essa informação e falou 'Meus filhos nasceram por essa equipe, eu estou aqui para te ajudar'. Ele me respeitou e ficou ali a postos. E isso me deu uma segurança absurda. Por isso, posso falar: Mulheres confiem nas equipes que dão nos salvamentos de urgência e emergência. Eles são realmente muito preparados e muito humanos. Tenho essa memória muito forte desse momento”, desabafou Joanna.

Hartmann também se lembra com carinho do nascimento que acompanhou, inesperadamente, mas com orgulho, honra e afeição. “A gente vive para vida dos outros, na verdade, ser bombeiro é ser escolhido. É uma profissão que vem até você. É uma vocação que a gente que tem ter cuidado com a vida dos outros. E esse caso marcou muito, primeiro parto que fiz como bombeiro e você ajudar a trazer uma vida para o mundo é uma coisa muito especial”, contou.

O reencontro da família com o bombeiro que assistiu ao parto, sargento Hartmann, foi promovido pelo Correio no mês de julho, três anos após o nascimento da criança. Confira o vídeo do momento e a entrevista exclusiva realizada no Marco Zero de Brasília.

Nas cidades, as corporações de segurança e o serviço público desempenham papel crucial em momentos de emergência, como em partos foram do ambiente hospitalar. Nos últimos sete anos, o Corpo de Bombeiros do Distrito Federal realizou 5.557 partos. Muitos deles foram realizados em vias públicas ou meios de transporte, longe do ambiente hospitalar, mas com técnica e segurança. Segundo o CBMDF, todos os militares são capacitados e recebem treinamento específico para atuar nesse tipo de ocorrência durante o curso de formação.

Histórico de vida

O subtenente Erilton, do Corpo de Bombeiros, conta que já participou de cinco ocorrências de parto. Duas delas o marcaram de forma especial. Em uma delas, estava de plantão no Batalhão da Esplanada quando a patrulha recebeu o chamado para socorrer uma grávida no Varjão. "Quando entramos na cidade, o marido estava vindo de frente, estacionou rapidamente e nos chamava acenando com os dois braços. Quando abro a porta traseira, a gestante estava deitada, com a cabeça pro lado direito. Foi rápido. O bebê nasceu. Acolhi nos lençóis e preparei para cortar o cordão umbilical”, narra o subtenente do Corpo de Bombeiros.

O parto ocorreu em um estacionamento perto de um posto de saúde. Em seguida, uma médica apareceu e avaliou mãe e filha. A história saiu na capa do Correio em 22 de outubro de 2009. Aquela edição do jornal relembrou outras três partos no caminho da maternidade no ano anterior.

Reprodução - Capa do Correio Braziliense de 22 de outubro 2009

O subtenente reflete que o trabalho como bombeiro exige preparação pra vários tipos de atendimentos, mas nascimentos marcam de uma maneira especial. "Trabalhamos com extremos. Morte e vida. Por isso, o parto faz a diferença", considera.

Em 2023, a corporação foi acionada para socorrer uma gestante que entrou em trabalho de parto em um ônibus urbano. A mulher morava perto do hospital, estava sozinha em casa quando sentiu as contrações aumentarem e decidiu ir para a unidade de saúde. Ao passar na catraca, a bolsa estourou e ela precisou ser socorrida com urgência.

O segundo-sargento Frederico Melo, do CBMDF, atendeu a ocorrência e assistiu ao parto, fazendo o acolhimento adequado e humanizado da gestante e do bebê. “O ônibus estava lotado. O motorista parou e o pessoal ligou desesperado. Quando fui fazer a avaliação, vi que não tinha só coroado, já tinha passado a metade da cabeça. Só deu tempo de acompanhar o término do giro. E aí ele nasceu. O marido dela, pai da criança, trabalhava nas proximidades. Foi até o local e, dentro do ônibus, cortou o cordão umbilical. Foi aquela comoção”, detalhou, com emoção e orgulho. Melo revela ainda que a mãe da criança colocou o nome, o segundo nome da criança de Frederico, em homenagem ao militar que assistiu ao parto.

Jaqueline Fonseca / CB/DAPress - O Segundo-sargento Frederico Melo já conduziu vários partos em vias públicas e conta sobre o nascimento de um bebê dentro do ônibus em 2023

Parto na patrulha da PMDF

Em agosto de 2006, a subtenente Hilze Rosa Palmeira, da Polícia Militar do DF, que entrou para reserva em 2024, depois de mais de 30 anos de prestação de serviço nas ruas, conta que uma das histórias mais marcante nas três décadas de carreira foi um parto que ela conduziu em uma patrulha da PM. Era fim da tarde quando o batalhão da ROTAM, do qual Hilze fazia parte, se preparava para uma operação de combate ao tráfico de drogas na região do Areal, em Taguatinga. Antes de começar a busca pelos criminosos, ela foi chamada por uma mulher que estava desde as primeiras horas da manhã tentando uma ambulância para ir ao hospital. Grávida de 9 meses, a jovem mãe acreditava que estava em trabalho de parto — e estava mesmo.

Arquivo Pessoal - A subtenente Hilze Rosa Palmeira, foi abordada por uma gestante durante uma operação de combate ao tráfico de drogas e realizou um parto dentro da viatura da ROTAM

A subtenente Hilze pegou uma patrulha e mais três policiais para levar a gestante ao hospital. No meio do caminho, um engarrafamento atrapalhou o trajeto, que seria de cerca de 10 minutos. A bolsa da parturiente estourou. Com o carro em movimento, a subtenente Hilze segurou o bebê e cuidou para que ele fosse agasalhado até chegar ao hospital. “Achei que nem ia nascer, pensei que daria tempo de chegar ao hospital, mas acabou saindo, tive que segurar. Quando o bebê saiu, nem deu tempo de colocar a luva. O complicado foi depois, porque o bebê nasceu sem chorar. Aí virei ele de lado, dei um tapinha nas costas. Nenhuma operação, ocorrência ou troca de tiro que eu já participei foi tão tenso e tão emocionante”, relatou ao Correio. Na época, o assunto ganhou repercussão nacional e foi destaque na capa do jornal.

Quase 20 anos após o nascimento da criança na patrulha da PM, as soluções de transporte e mobilidade avançaram de forma significativa e atualmente o uso de carros por aplicativo é uma realidade para milhares de brasileiros. A Uber, empresa de tecnologia que liga motoristas a clientes, afirma que 80% dos brasileiros já utilizaram a plataforma para se deslocar nas cidades brasileiras. Existem casos em que é justamente para a maternidade. Em Joinville (SC), gestante e avó pediram um carro de aplicativo para irem até a maternidade onde nasceria o terceiro filho de Aline Mancia de Souza. No trajeto, de cerca de 30 minutos entre a casa e a maternidade, a bolsa estourou e avó teve que conduzir o parto da filha dentro do carro.

Já em Boa Vista, mãe a avó pediram um Uber para a maternidade que fica a 13km de casa. No meio de uma avenida, no centro da cidade, o trabalho de parto avançou. O motorista do carro de aplicativo parou, a avó da criança desceu e começou gritar por socorro. Um carro da Guarda Municipal passava pelo local. A agente Monique Feitosa viu a situação e parou para prestar socorro sem saber do que se tratava. “Ela estava a caminho da maternidade, porém não conseguiu. As dores e as contrações ficaram muito fortes e o motorista de aplicativo teve que parar e o nascimento foi ali mesmo”, explicou Monique. O nascimento foi registrado em fevereiro de 2025.

Procurada para comentar os casos de parto dentro do carro de aplicativo, a Uber esclareceu que, embora ofereça opções de mobilidade, os veículos não devem ser utilizados como primeiras opções em casos de parto. “A Uber oferece opções de mobilidade eficientes e que proporcionam mais alternativas para milhões de pessoas. No entanto, é importante esclarecer que o aplicativo não substitui serviços de urgência e emergência, que demandam veículos e profissionais com preparação adequada para atender casos dessa natureza. Em caso de necessidade, recomendamos que sejam acionados os canais de emergência apropriados”, afirmou a empresa em nota.

Técnica e segurança são fundamentais no transporte de gestantes

O transporte de gestantes em veículos particulares ou de aplicativo exige certa atenção e requer segurança desde o momento em que a mulher resolve sair de casa até o deslocamento em si. O médico Ricardo Porto Tedesco, integrante da Comissão Nacional Especializada em Assistência Ao Abortamento, Parto e Puerpério da Federação Brasileira das Associações em Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), explica que sair de casa cedo demais pode ser um problema, especialmente para as mulheres que desejam realizar um parto natural. O profissional explica que estar presente no ambiente hospitalar muito tempo antes do momento do parto pode gerar ansiedade e comprometer o bom andamento do parto e aponta três aspectos que podem servir de alerta para a saída.

  • Contração dolorosa que se repete no intervalo entre 5 a 10 minutos. É o que se chama de fase ativa, quando a dilatação geralmente já tem pelo menos 4cm e o parto ocorre nas próximas horas;
  • É muito comum a mulher perceber a saída de uma secreção mucosa, chamada de tampão mucoso;
  • Rompimento da bolsa, com a saída de um líquido quente, tem um cheiro parece água sanitária. Não é igual o xixi que ela corre para o banheiro, ela perde onde ela estiver.

O obstetra explica ainda que o ideal é deixar todas as questões relacionadas ao deslocamento resolvidas antecipadamente. Bolsas, documentos e análises dos melhores trajetos devem ser equacionados antes do momento de forte emoção. A posição no carro deve seguir o que for de maior conforto para a gestante e, além disso, a segurança não pode ser deixada de lado em momento algum. “O importante é que aonde ela estiver, que ela use o cinto, que deve passar uma cinta embaixo do ventre, né, embaixo do abdômen e a outra entre as duas mamas”, esclarece o médico.

O segundo-sargento Frederico Melo, do Corpo de Bombeiros do DF, instrui como os motoristas e acompanhantes devem auxiliar as gestantes durante o trajeto até o hospital. "Uma das coisas mais importantes é manter a calma e ter em mãos o cartão do pré-natal com todas as informações da gestação para um caso de emergência", explica. Além disso, ele dá orientações caso o trabalho de parto evolua e alerta que apenas situações de parto em curso normal podem ser realizados fora do ambiente hospitalar. Casos de emergência, com bebê sem encaixe ou de parto pélvico devem ser imediatamente levados para a unidade hospitalar mais próxima. Confira o vídeo produzido pelo Correio:

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Arquivo Pessoal - Ismael, filho da professora Larine Pires, nasceu na EPTG a caminho da maternidade
Arquivo Pessoal - Joanna teve o bebê dentro do carro, no Buraco do Tatu, próximo ao Marco Zero de Brasília
Jaqueline Fonseca / CB/DAPress - O Segundo-sargento Frederico Melo já conduziu vários partos em vias públicas e conta sobre o nascimento de um bebê dentro do ônibus em 2023
Arquivo Pessoal - A subtenente Hilze Rosa Palmeira, foi abordada por uma gestante durante uma operação de combate ao tráfico de drogas e realizou um parto dentro da viatura da ROTAM
Material cedido ao Correio - Certidão consta Buraco do Tatu como local de nascimento
Material cedido ao Correio - Certidão do filho de Larine consta EPTG como local de nascimento
Arquivo Pessoal - O registro de nascimento de Ismael apresenta a informação de que a criança nasceu na EPTG
Arquivo Pessoal - O registro de Nascimento de Tomás, filho de Joanna, informa que ele nasceu em trânsito
Reprodução - Capa do Correio Braziliense de 22 de outubro 2009