VIOLÊNCIA

Policiais civis afastados depois de truculência na Asa Norte

Agentes responsáveis por imobilizar e agredir homem após batida de trânsito na Asa Norte são realocados para funções administrativas. Corregedoria instaurou inquérito, e a OAB-DF pede responsabilização dos envolvidos

A ação dos policiais chocou pessoas que presenciaram o momento em que Diego era preso -  (crédito: Material cedido)
A ação dos policiais chocou pessoas que presenciaram o momento em que Diego era preso - (crédito: Material cedido)

Uma abordagem agressiva por parte de dois policiais civis após uma batida de carro na Asa Norte causou comoção entre a sociedade, o poder público e entidades representativas. A Corregedoria-Geral da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) instaurou inquérito policial e procedimento administrativo disciplinar para apurar a conduta de Gustavo Gonçalves Suppa e Victor Baracho Alves após os policiais perseguirem, imobilizarem e agredirem o publicitário Diego Torres Machado de Campos, 42 anos, enquanto o filho dele, de apenas 5 anos, assistia a tudo.

A criança foi acolhida por uma pessoa que passava no local, na comercial da 112 Norte, enquanto o pai foi algemado e levado à delegacia pelos policiais. Em imagens divulgadas nas redes sociais, enquanto os policiais agiam para imobilizar Diego, uma mulher entrou no carro e resgatou a criança. Os fatos serão apurados pela Corregedoria sob o aspecto criminal e funcional.

Ao Correio, a Polícia Civil informou que "a criança foi acolhida por uma cidadã até a chegada da mãe, previamente acionada". Segundo a PCDF, o motorista teria forçado a passagem na via, colidido com a viatura descaracterizada, na altura da 115 Norte, e fugido do local, desobedecendo sinais luminosos e sonoros de parada. Ele foi interceptado na 112 Norte e, de acordo com a corporação, apresentou comportamento não colaborativo, o que motivou o uso de algemas.

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Testemunhas que estavam na quadra comercial da 112 Norte relataram que a reação dos policiais foi desproporcional. Um dos comerciantes descreveu a cena como violenta. "Era nítido que ele (o motorista) não oferecia resistência. E, se não fossem os comerciantes, eles iam levar o cara para a delegacia e a criança ia ficar sozinha", disse um comerciante, que não quis se identificar.

A Comissão de Defesa dos Direitos da Criança, Adolescente e Juventude (CDDCAJ) da seccional do DF da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), repudiou veementemente a atitude dos agentes com relação à criança. "O artigo 227 da Constituição Federal determina que é dever da família, do Estado e de toda a sociedade assegurar a proteção integral das crianças, bem como colocá-las a salvo de toda forma de negligência ou violência", publicou a comissão. Nos termos do artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, a prioridade absoluta atribuída às crianças compreende ainda a primazia de receber proteção e socorro nos serviços públicos, exatamente o oposto do ocorrido nessa truculenta ação policial", continuou.

"A violência psicológica a que essa criança foi exposta tem, inclusive, o potencial de comprometer o seu desenvolvimento psíquico e emocional, deixando sequelas graves. Assim, nossa seccional está tomando todas as providências cabíveis para uma rigorosa apuração dos graves fatos", destacou a nota da OAB. 

Presidente da OAB-DF, Paulo Maurício Siqueira acrescentou em vídeo que a OAB já oficiou o Governo do Distrito Federal (GDF) e o Ministério Público exigindo medidas enérgicas no caso. "Não se está diante de situação de mera Corregedoria ou processo administrativo, mas sim de crimes em tese praticados contra um cidadão. Abuso de autoridade, lesão corporal, abandono de menor e a situação vexatória de uma criança deixada sem qualquer amparo. Não se espera atitude assim da polícia e sim proteção aos cidadãos. É por isso que exigimos o afastamento dos policiais", afirmou.

O secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Sandro Avelar, classificou como "situação atípica" a atitude dos policiais. "Lamentamos profundamente o ocorrido. Como pai e como gestor da Segurança Pública, entendo o que situações como essa despertam e me solidarizo com todos os envolvidos, especialmente com a família da criança. É importante esclarecer que não foi uma abordagem policial planejada, mas uma situação atípica, iniciada por uma divergência no trânsito", disse Avelar ao Correio.

"A Corregedoria da Polícia Civil instaurou inquérito e procedimento disciplinar para apurar com rigor todas as circunstâncias. A transparência será total, e os vídeos que vieram a público serão fundamentais para esclarecer os fatos. Reafirmo nosso compromisso com a legalidade e com o respeito aos direitos da população do DF", acrescentou o secretário. 

O Núcleo de Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (Ncap/MPDFT) instaurou um procedimento investigativo para apurar a abordagem. As conclusões da apuração orientarão as medidas a serem adotadas, que podem incluir desde ações corretivas até a responsabilização dos envolvidos, conforme o caso.

Paralelamente, o Ncap acompanhará o inquérito policial e o procedimento administrativo disciplinar conduzido pela Corregedoria-Geral da Polícia Civil do DF, com o objetivo de assegurar rigor e transparência. O núcleo é responsável por fiscalizar e controlar a atividade da Polícia Civil, com foco na legalidade e na defesa dos direitos fundamentais, especialmente em casos que envolvam indícios de abuso ou conduta irregular.

Advogado especialista em direito da família, Antonio Carlos Marques Fernandes ressaltou que o uso da força pelos policiais envolvidos foi desproporcional. "O desfecho poderia ter sido pior caso os terceiros que acolheram a criança tivessem intenções maldosas", ponderou. "É preciso provar que houve realmente a colisão alegada pelos policiais. Pode ter sido um caso de uma batida leve que foi sentida pela viatura onde estavam os policiais e ter passado despercebida pelo outro motorista. É preciso investigar", pontuou. 

Fernandes explica que, além de sanções administrativas, os policiais devem responder na justiça pelos atos cometidos. "Provavelmente, eles responderão por lesão corporal, abuso de autoridade e, na minha concepção, crime de tortura pelo fato da criança ter visto o próprio pai ser agredido. Além disso, se ele não ofereceu resistência, o uso das algemas também foi abusivo", elencou.

"O Estado também deve ser responsabilizado. Tem a questão do dano moral e psicológico à criança. Os artigos 4º e 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dizem que as crianças devem ser protegidas e respeitadas", observou. "O artigo 13º diz que é fundamental a convivência familiar e comunitária da criança. Ela foi retirada do pai sem um cuidado competente. O artigo 18º diz que, em caso de risco, é dever do Estado zelar pela criança e, neste caso, a criança foi exposta pelo Estado. Cabe indenização à família da vítima", comentou.

Manifestações

A Associação dos Conselheiros Tutelares do Distrito Federal (ACT-DF) chegou a se manifestar prestando solidariedade à família da criança envolvida no episódio. "A indignação passa primeiro pelo fato de tudo ter sido feito na frente da criança. É inimaginável o trauma causado. Segundo, pelo fato de aparentemente nenhum apoio ou acolhimento ter sido ofertado ao infante para minimização do impacto da situação pelos agentes", disse nota divulgada pela associação.

"Esse caso deve servir para que tenhamos maior preparo, mediante formação, dos agentes estatais. A criança é prioridade absoluta, não dá para aceitar outras ações como essa. Confiamos em ação enérgica por parte da Corregedoria da Polícia Civil. O Ministério Público do Distrito Federal já se manifestou e o Conselho Tutelar competente em atuar na área da situação já tem ciência do caso", continuou a nota.

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) também se manifestou e classificou como abuso de autoridade a postura dos policiais. "Estamos pedindo aos órgãos competentes o afastamento preliminar dos policiais de suas funções e a apuração rigorosa de uma série de violações, que incluem agressão, abuso de autoridade, prisão arbitrária e abandono de incapaz", disse o presidente da comissão, deputado distrital Fábio Félix (PSol).

Ação desproporcional

Um abismo que separa a atuação policial legalmente esperada da prática autoritária ainda está presente em setores das forças de segurança pública. Com relação ao caso ocorrido na Asa Norte, o que as imagens mostram não é uma abordagem policial técnica. Mas a expressão nua e crua de um poder que ignorou protocolos e critérios de humanidade. Não foi o Estado que fez a diferença naquele momento, foram duas cidadãs que, sem a autoridade do Estado, sem viatura e sem obrigação, agiram com o que mais faltou naquela cena: humanidade.

O que se espera de policiais é o respeito à legalidade, o uso proporcional da força e, acima de tudo, a preservação da dignidade humana. Ao contrário disso, o que se viu foi uma ação desproporcional, marcada pela truculência e pela insensibilidade. O pai foi exposto, a criança foi ignorada, e a autoridade agiu como se não devesse prestar contas a ninguém.

Quando agentes armados partem para a agressão em plena via pública, estamos diante de um risco duplo: a violação de direitos e a banalização da violência sob o manto do poder público. A Constituição Federal de 1988 estabelece no artigo 5º, que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, e que o Estado deve proteger integralmente os direitos da criança e do adolescente (art. 227). A atuação policial, portanto, não pode ser pautada pela força bruta, mas sim pelo uso comedido da autoridade, em estrita legalidade.

Do ponto de vista jurídico penal, os atos registrados podem configurar, em tese: Abuso de autoridade (Lei nº 13.869/2019), pelo uso excessivo da força e condução coercitiva indevida; Lesão corporal (art. 129 do Código Penal), pelas agressões físicas; Abandono de incapaz (art. 133 do CP), ao deixar a criança desassistida; e Violação ao ECA, por expor o menor a risco físico e emocional.

É tempo de compreendermos que a segurança pública eficiente não se mede pela truculência e pelo excesso, mas pela legitimidade das ações policiais. A autoridade que se vale da violência desmotivada enfraquece o próprio Estado de Direito. Quem defende a lei, deve ser o primeiro a cumpri-la. O caso da Asa Norte não é apenas mais um incidente. É um alerta. E deve ir além de indignação pública, buscar respostas institucionais imediatas, com investigação rigorosa, responsabilização exemplar e uma urgente reflexão sobre os limites da força estatal em um Estado democrático de direito.

Por José Adão Rezende, advogado criminalista e delegado aposentado da Polícia Civil do DF

 


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postado em 11/07/2025 06:00 / atualizado em 11/07/2025 11:12
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