
O Distrito Federal ocupa o segundo lugar no ranking de ingestão excessiva de álcool por habitantes das capitais do Brasil. Aqui, um em cada quatro indivíduos apresentou consumo abusivo de bebidas entre 2019 e 2023, conforme dados mais recentes do boletim epidemiológico da Secretaria de Saúde (SES-DF). A unidade da Federação fica atrás somente de Salvador. Quando associada ao trânsito, a alcoolemia pode resultar em sinistros graves, como colisões, atropelamentos, capotagens e até mortes.
Um desses casos trágicos ocorreu no último sábado, na Estrutural, e feriu ao menos 14 pessoas, deixando-as com fraturas e queimaduras de 1º e 2º graus. Um menino de 2 anos perdeu uma das orelhas devido ao impacto da batida. Apesar da gravidade da situação, não houve mortes. Até a última atualização, ao menos duas pessoas permaneciam internadas no Hospital de Base, uma jovem de 27 anos e uma criança de 2.
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Na ocasião, um grupo de fiéis tinha acabado de sair de um culto em uma igreja evangélica da congregação da Assembleia de Deus, na Quadra 2, quando foi atropelado por um motorista embriagado, sem habilitação e em alta velocidade. Walisson Carvalho de Souza, 32 anos, fugiu do local sem prestar socorro, e posteriormente se apresentou à delegacia. Ontem, em audiência de custódia, teve a prisão preventiva decretada.
No momento do sinistro, os fiéis fritavam pastéis para vender e arrecadar fundos com o objetivo de realizar um retiro de jovens. Com o impacto da primeira batida, uma bacia com óleo quente usado para fritar o salgado caiu ao chão e queimou algumas das vítimas, inclusive crianças. Uma delas, de 5 anos, sofreu queimaduras de 2º grau em 40% do corpo e foi conduzida à Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte (Hran).
A tragédia gerou comoção e chamou atenção para a necessidade de reforço na fiscalização. O Departamento de Trânsito (Detran-DF) pretende fazer uma investigação para avaliar se o caso foi pontual ou se há reincidência na região. Caso seja comprovada alta frequência de sinistros, a fiscalização será reforçada na região. Ainda não há prazo confirmado para o início do levantamento.
"Filme de terror"
Em corredores estreitos, familiares e amigos tentavam levar Denise dos Santos, 37, sobre uma tábua, até seu quarto depois do acidente. Impossibilitada de andar, a autônoma teve a bacia quebrada e queimaduras de 2º grau no braço esquerdo, pescoço e barriga. Ela ficou internada no Hospital Regional de Taguatinga (HRT) e ganhou alta na manhã de ontem. Deitada e com uma sonda vesical (utilizada para drenagem temporária da bexiga), ela contou que deve permanecer acamada por ao menos dois meses, conforme recomendação médica.
À reportagem, Denise disse que, antes dos atropelamentos, notou Walisson Carvalho dirigindo agitado um carro preto. "Ele estava para lá e para cá, próximo à distribuidora. Não o conheço diretamente, mas não é um rosto estranho na região", ressaltou. No momento do impacto, a vítima estava sentada com outros fiéis em cadeiras na calçada. Ao menos 30 pessoas estavam reunidas próximas ao local, a maioria, crianças. Ela foi uma das primeiras pessoas a serem atingidas.
"Escutei a pancada e, quando me dei conta, estava debaixo do carro. Ele (Walisson) nos atingiu, parou sobre nós e depois acelerou novamente. Ainda desceu do carro, me pediu desculpas e logo foi embora, sem prestar qualquer socorro. Lembro-me de ouvir muitos gritos e o choro das crianças. Foi um filme de terror", descreveu Denise, que cuidava das crianças do bairro para garantir sua renda e sustentar os três filhos, de 9, 7 e 5 anos. A primogênita também foi atingida e sofreu machucados na perna. Ela se recuperava, ainda com dores, no quarto ao lado.
A preocupação de Denise, agora, é se recuperar o mais rapidamente possível para voltar à rotina. "Não posso ficar desempregada. Quem é autônomo não tem benefícios quando sofre acidentes assim. Se eu não voltar a trabalhar, como vou cuidar dos meus filhos? Agora é orar para que isso nunca mais aconteça", refletiu a vítima do atropelamento, que é mãe solo.
Na rua da igreja onde ocorreu o sinistro, outra mulher atingida pelo veículo contou ainda não conseguir processar a tragédia. Ela estava fritando os pastéis e teve o braço queimado pelo óleo. Seu rosto, ainda inchado, também estava com manchas e arranhados. "Ainda estamos um pouco anestesiados com o susto. Então, acho que a dor dos machucados e das queimaduras vai aparecer quando passar a adrenalina", disse a vítima que, abalada, preferiu não se identificar.
Autuações
De acordo com dados oficiais, as autuações por infração ao artigo 165 e 165-A do Código de Trânsito Brasileiro — que tratam da condução sob efeito de álcool — caíram de 26.444 em 2023 para 20.819 em 2024. Em 2025, até junho, porém, foram registradas 13.003 infrações. Para Bruno Baruque, diretor de Policiamento e Fiscalização de Trânsito do Detran-DF, essa redução é reflexo direto do investimento em fiscalização e em novos recursos tecnológicos. Uma das aquisições mais recentes foi de etilômetros passivos, que conseguem detectar a presença de álcool no ar expirado em apenas cinco segundos. "Se antes flagrávamos 20 ou 30 motoristas em uma blitz, hoje conseguimos identificar até 150", pontuou.
Apesar da tendência de queda nos números de autuações por alcoolemia ao volante nos últimos anos, o consumo de bebida alcoólica por condutores é motivo de alerta para o Detran. Baruque reforçou que a associação entre álcool e direção continua sendo uma das principais causas de acidentes no DF. "As pessoas insistem em associar direção e álcool. Bebida e direção nunca vão resultar em algo bom", afirmou.
Para o especialista em trânsito e transporte urbano e professor da Universidade de Brasília (UnB) Pastor Willy, dirigir sob efeito de álcool é uma prática que compromete completamente a percepção do condutor, com riscos que vão muito além do que a maioria das pessoas imagina. "A pessoa perde a noção de espaço, de profundidade e de reação. Mesmo em baixa velocidade, não há percepção suficiente para realizar manobras básicas. É um erro achar que se consegue controlar a situação", explicou.
O professor ressalta que campanhas educativas são essenciais, mas devem ser permanentes, incisivas e estrategicamente reforçadas em determinados períodos do ano. "Não se pode baixar a guarda. A educação para o trânsito precisa chegar às escolas, aos bairros, às quadras, à vizinhança. Falta uma interlocução direta com quem vive o problema no cotidiano. Existem boas políticas no papel, mas ainda estamos distantes de levá-las até quem realmente precisa", apontou.
Para ilustrar os efeitos da embriaguez na direção, Pastor Willy relembra ações educativas realizadas com alunos na UnB. Em simulações com óculos de realidade virtual, que alteram a percepção de espaço, até pessoas jovens e saudáveis falham ao tentar se locomover. “Muitos acham que podem ‘driblar’ o efeito do álcool. Mas mesmo em ambiente controlado, falham. E quando tentam contar vantagem, dizendo que chegaram em casa mesmo bêbados, estão mentindo. Estão incentivando outros a repetir comportamentos de risco”, advertiu.
Willy reconhece que há avanços em outros países, como veículos que limitam a velocidade automaticamente ou sensores que identificam sinais de embriaguez. No entanto, esses recursos ainda são inacessíveis para grande parte da população brasileira. “São caros, sofisticados, e não vão chegar onde realmente deveriam estar — nas periferias, nos bairros afastados do centro. Por isso, não podemos confiar apenas na tecnologia. Precisamos de ações diretas e estruturais”.
Carência de recursos
De acordo com Bruno Baruque, do Detran, mais do que conscientização, é preciso intensificar a fiscalização. "Consciência todos têm. A sensação de impunidade está diminuindo, mas só vamos ver uma mudança real com punições efetivas e uma mudança cultural da população em relação ao consumo de álcool", afirmou. O diretor, no entanto, ressaltou que todos esses esforços ainda carecem de efetivo adequado para lidar com todas as ocorrências.
"Hoje, estamos operando com cerca de 50% do efetivo necessário. Isso limita nossa capacidade de cobrir todo o DF", revela. Apesar disso, a integração entre Detran, Departamento de Estradas de Rodagem (DER), Polícia Militar (PMDF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF) tem sido essencial para manter as operações ativas. "Temos uma comissão que se reúne a cada 15 dias para alinhar estratégias. Mas estamos em diálogo com o governo para realização de mais concursos", reforçou.
Segundo análise do psiquiatra e coordenador da ala de psiquiatria do Hospital Anchieta, Fábio Leite, a questão da alcoolemia precisa ser tratada como política pública. "Não pode ser só uma lei, tem que haver campanhas constantes nas escolas, universidades, instituições, setor público e privado, empresas. Isso é uma questão de saúde e não só de justiça e lei", comentou.
"Normalmente, as leis não funcionam quando elas são de fora para dentro, as pessoas precisam entender qual é o motivo das leis, eles têm que ser sensibilizados internamente do ponto de vista emocional, do ponto de vista cognitivo, do ponto de vista de educação. Só proibir e reprimir não é suficiente", acrescentou.
Não é só trânsito
Paulo Cesar Marques da Silva é especialista em engenharia de tráfego e professor da UnB
Infelizmente assistimos no último sábado a mais uma tragédia provocada por um condutor de veículo que parece ignorar suas responsabilidades. Claro que é preciso aguardar as apurações antes de qualquer conclusão, mas, segundo as reportagens na imprensa, podemos adiantar que neste último episódio estavam presentes pelo menos três fatores antecedentes que evidenciam tal irresponsabilidade: a falta da habilitação, a embriaguez ao volante e o excesso de velocidade. Sem falar da evasão do local depois da ocorrência, sem prestar socorro às vítimas.
Intuitivamente, a necessidade de uma fiscalização rigorosa e a certeza da punição em caso de infração surgem como respostas óbvias, capazes de inibir ocorrências desse tipo. Sem dúvida alguma, essas são medidas importantes das quais o Poder Público não pode se eximir. Resta saber, todavia, se elas são suficientes.
Uma primeira limitação ao alcance da fiscalização diz respeito à óbvia impossibilidade da onipresença dos agentes de trânsito e de equipamentos eletrônicos de controle durante 24 horas por dia, sete dias por semana. Mas não se trata de uma limitação apenas em termos dos custos para manter tal aparato — trata-se de uma compreensão incorreta de um fenômeno social.
Os espaços públicos de circulação compõem um universo de convívio social que talvez não encontre paralelo em outras dimensões de nosso cotidiano. Neles, promover o respeito à coletividade e aos valores da cidadania é tarefa de toda a sociedade. Sem ignorar o protagonismo do Poder Público em formular iniciativas, cabe a cada um e cada uma de nós criar constrangimentos àqueles e àquelas a nosso redor que insistem em não respeitar o código de conduta social consolidado nas leis do trânsito.
Caminhão invade casa
Um caminhão desgovernado atravessou a via Epia e bateu contra o muro de uma residência em um condomínio na região do Park Way, na noite do último domingo. O acidente ocorreu por volta das 22h50, na SMPW Quadra 08, nas proximidades do viaduto do Catetinho. De acordo com o Corpo de Bombeiros (CBMDF), que atendeu a ocorrência, o veículo — um caminhão Mercedes-Benz 2324, de cor azul — era conduzido por um homem de 38 anos. O motorista não transportava carga no momento do acidente e foi encontrado pelas equipes caminhando no local, sem ferimentos aparentes. Com o impacto, a central de energia do condomínio foi danificada, o que exigiu o acionamento da Neoenergia para realizar os reparos. A moradora da residência atingida estava em casa durante a colisão, mas também não se feriu. A Polícia Civil investiga se o motorista estava alcoolizado no momento do acidente.
Colaborou Mila Ferreira
Cidades DF
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