
As lembranças de Isaac Vilhena ainda seguem avassaladoras nos corações dos pais, irmãos, amigos e vizinhos. Há pouco mais de um mês, o menino de 16 anos foi assassinado ao lado de casa, no parque da 112/113 Sul, por um adolescente armado com faca que roubou seu celular. "Parece que foi ontem. É muito presente ainda", emociona-se a mãe, Jane, abraçada pelo marido, Lucas.
A família tenta reconstruir a rotina em meio à dor e ao abismo deixado pela partida precoce do filho caçula. "Isaac era sorridente, alegre, era a marca dele", exalta a mãe, lembrando da solidariedade que têm recebido, principalmente dos vizinhos, também inconformados e assustados com a perda. Ela mal consegue se alimentar. Ao lado de Lucas e do filho mais velho, Edson Júnior, tentam ser o suporte uns dos outros, acolhidos pela fé.
Apesar de ainda viverem o luto, Lucas e Jane se alegram com as muitas mensagens de acolhimento. Também avaliam projetos e propostas de trabalho em conjunto, tanto de conscientização da população quanto para manter viva a memória de Isaac.
O primeiro deles é a instalação de um totem no local onde o jovem foi morto. "Foi ali onde o sorriso dele se encerrou", lembra Jane. O casal já fez orçamentos e uma simulação do projeto, que foi submetido à Administração do Plano Piloto e aguarda autorização. A administração confirmou que a solicitação foi protocolada em 15 de novembro e encontra-se em análise técnica. O prazo legal para resposta é de 20 dias e, após a emissão do parecer interno, o processo será encaminhado à Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação do DF (Seduh).
Enquanto isso, a rede de síndicos da 112 Sul homenageará Isaac com uma placa na quadra onde o menino foi assassinado. O grupo enviou para Jane dois modelos, e a mãe escolheu o mais colorido. O letreiro trará a frase "Aqui, o coração recorda o que o tempo não apaga: a vida, o riso, e a luz de quem partiu cedo demais".
Hoje, no local, permanecem as flores ressecadas da homenagem feita pelo vizinho que socorreu Isaac no dia do assassinato. O nome dele escrito com pétalas onde caiu ferido, com vários vasos de planta em volta. Foi ali que, no dia seguinte, um sábado, um grupo se reuniu para celebrar a vida do menino. Entre os presentes, estava Cristina Del'Isola, mãe de Maria Cláudia, que também teve a vida ceifada por crime brutal e, agora, batiza o parque.
Rede de apoio na quadra
O servidor público Paulino Motter, 60 anos, foi o vizinho que socorreu Isaac naqueles que seriam os últimos momentos de vida do menino. Foi dele também a iniciativa de escrever o nome do rapaz sobre o concreto do parque. Os sentimentos de incredulidade e de indignação permanecem até hoje. Em 17 de novembro, um mês após a morte do adolescente, ele relembrou a cena e foi tomado novamente pelas sensações que o dominaram naquela noite de sexta-feira. Decidiu, então, escrever uma longa carta a Isaac e a encaminhou a seus pais (leia trechos).
"Esse assunto acabou me pegando muito diretamente. Eu estava retornando do trabalho um pouco mais cedo quando se descortinou o ataque. Uma jovem que presenciou ficou em tal estado de choque que eu a acompanhei ao metrô e, logo que retornei, me deparei com aquela cena. Isaac já estava estendido no chão. Lembro de ter colocado a mão no pulso dele, e aí acompanhei todo aquele desenlace", relembra o morador.
No dia seguinte, Paulino, que é morador da quadra residencial, voltou ao local bem cedo, e se deparou com as marcas de sangue. "Aí fiz uma marcação com flores que eu tirei dali da região — 'Isaac vive'. Formou-se naquele local um ponto de referência, houve o ato, em 19 de outubro, e depois se soltaram aqueles balões. Acompanhei tudo como testemunho. Estava com minha filha de 13 anos que, dias antes, estava jogando nessa mesma quadra, e isso nos tocou de maneira muito profunda", relembra Paulino.
O sentido da carta um mês depois, portanto, é de reconhecer as inúmeras fragilidades que cercam a cidade. "Talvez, o que eu quis dizer, depois de ver toda a repercussão dos fatos, é que, no mundo idealizado, eles seriam colegas de escola, numa Escola Parque, como pensado por Anísio Teixeira. E é esse mundo que se parte de forma acachapante", lamenta o morador. "Eu não conhecia a família até então, mas a gente acaba criando um envolvimento emocional", detalha.
Jane e Lucas emocionaram-se muito com a carta e também com um poema que Paulino escreveu sobre Isaac, e agora mantém contato com o vizinho. Uma das músicas que guia a caminhada espiritual da mãe em busca de conforto é Verdades do tempo, de Thiago Brado. "Ame mais, abrace mais / Pois não sabemos quanto tempo temos pra respirar", dizem alguns dos versos, que ela cantarola, para em seguida concluir: "Eu não perdi tempo com o Isaac. Eu ganhei cada segundo".
Reveja a entrevista com Lucas e Jane sobre o crime:
Cobrança por justiça e segurança
Na quadra 112 Sul, onde a família mora, e nos arredores do parque, o sentimento que predomina depois do crime é o de insegurança. "Isaac não foi um caso isolado. Houve um roubo de celular na quinta-feira (13 de novembro). Nós é que estamos presos. Não estamos seguros", reclama Jane. "As pessoas, não só o meu filho, têm o direito de ocupar o espaço público. Meu filho estava brincando num parque", indigna-se.
Ao menos dois assaltos com faca ocorreram este mês na região do parque onde Isaac foi morto, segundo relato de moradores. O sistema Secretaria de Segurança Pública ainda não consolidou os dados de novembro e não traz o recorte por quadra. Em outubro, a pasta registrou 68 roubos a transeuntes em todo o Plano Piloto.
A iluminação ruim no parque é outra reclamação recorrente dos frequentadores. Alguns dias após o crime, o presidente da CEB Iluminação Pública e Serviços (CEB IPes), Edison Garcia, fez uma visita técnica ao local, a convite do secretário de Segurança Pública do DF, Sandro Avelar.
Em nota, a companhia informou que identificou a retirada dos postes de iluminação pública da alameda central de forma deliberada durante reforma, sem reposição. "Tal alteração comprometeu a uniformidade luminosa do espaço, resultando em iluminação lateral insuficiente", detalha o texto. Um novo projeto de iluminação do parque foi elaborado e, nesta semana, já começou a instalação de novos pontos de iluminação.
"A Secretaria de Segurança Pública, por sua vez, também se comprometeu a adotar medidas para reforçar a segurança no local, demonstrando alinhamento entre as ações de iluminação pública e o policiamento preventivo", afirma a companhia em nota ao Correio.
A família de Isaac também busca justiça para o assassinato do jovem. O caso já foi encerrado pela Polícia Civil e segue, agora, a tramitação na Justiça. O Ministério Público do DF e Territórios informou que não pode dar detalhes, por se tratar de um trâmite em segredo de Justiça.
Lucas e Jane reforçam que não defendem a redução da maioridade penal, mas querem penas mais duras para casos como o de Isaac. "Não é vingança, é justiça", reforça a mãe.
Colaboraram Jéssica Andrade e Lara Costa
Leia a íntegra da carta a Isaac, escrita por Paulino Motter sob o heterônimo Pedro Santafé
Já se passou um mês, Isaac, mas parece que foi ontem. Tudo o que aconteceu naquele fim de tarde trágico de 17 de outubro continua vivo demais, latejando no mesmo ponto onde sua vida foi interrompida. É fácil para mim dizer o quanto tem sido doloroso o silêncio que se instalou no parque onde você tombou — afinal, éramos completos estranhos até o instante em que eu o vi ali, estendido na calçada, já desfalecido, após ser golpeado nas imediações. Mas, desde então, esse silêncio parece falar comigo.
Ontem, ao voltar do trabalho, quando desci na estação de metrô da 112 Sul e segui pelo mesmo caminho de sempre, lembrei-me de súbito que era 17 de novembro. Um mês exato. Fui tomado por uma sensação física, quase vertiginosa, de estar retornando ao teatro da tragédia. A cada passo, eu me aproximava do lugar marcado no concreto — uma marca que não se apaga — onde você caiu, como uma árvore jovem sacrificada antes do tempo. O contorno de flores secas ainda estava lá. O parque já escuro criava um cenário espectral, suspenso. E eu, de novo, fui esmagado pelo peso daquela cena que ceifou sua vida.
A pergunta que não quer calar — e que ninguém consegue responder — é por que tamanha brutalidade? Por que a “banalidade do mal” encontra terreno tão fértil entre nós? Quando um jovem de apenas 16 anos cai mortalmente ferido numa comunidade de vizinhança, algo irremediável se rompe. E o que fica latejando na memória coletiva nos assombrará por anos.Penso, sobretudo, nos seus pais. A imagem da sua mãe inclinada sobre o seu corpo, tentando reanimá-lo enquanto aguardava os bombeiros, permanece como um poderoso manifesto de estoicismo e amor. Revê-la no ato público do dia 19, depois na missa de sétimo dia na Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, e mais tarde sentada no banco de concreto ao lado do memorial, foi como testemunhar a coragem em estado bruto. A vida continuou para eles — mas jamais será a mesma.
Imagino a dor diária da sua mãe ao abrir seu armário, ao tentar organizar suas coisas, ao lidar com cada peça de roupa que já não encontrará seu corpo em crescimento. Ela, que certamente tantas vezes te cobrou para não largar o tênis no meio do caminho, agora se vê diante de um quarto transformado em santuário. Nada ali está apenas fora de lugar; tudo ali dói.O cotidiano da sua casa estará para sempre atravessado pela sua presençaausência. E o que mais machuca — e sempre machucará — é tudo o que você não pôde viver. É impossível enumerar, mas fácil intuir: o tempo que se abre aos 16 anos, os projetos em esboço, as descobertas, o primeiro amor que já fazia parte da sua história recente, e um futuro que nunca lhe será permitido construir. Perder alguém tão jovem constitui uma ferida geracional. Como sociedade, falhamos com você. E admitir isso é muito incômodo.
Escrever esta carta não é um gesto de grandeza moral. Talvez seja apenas a tentativa de lhe devolver um pouco da dignidade violada, de impedir que você morra pela segunda vez: pelo esquecimento. É, no fundo, uma vigília. Queria poder dizer-lhe: “Fico contigo mais um pouco, Isaac.” E foi isso que tentei expressar nos primeiros dez dias, retocando diariamente o pequeno memorial erguido em sua homenagem.
Não posso prometer que conseguirei cultivar sua memória para sempre. Mas espero sinceramente que a vizinhança que te viu crescer — esse pedaço de Brasília onde crianças de diferentes mundos poderiam se encontrar — aprenda um dia a proteger seus filhos, todos eles, de todas as classes sociais. Que possamos, enfim, realizar o sonho de Anísio Teixeira.
E há uma ironia amarga que não me dá paz, Isaac: você e seu algoz poderiam ter sido colegas numa Escola Parque, se não tivéssemos escolhido construir esta sociedade apartada que nos reduz, nos empobrece e nos mata aos poucos. Perdemos todos.
II.
Preciso te contar, Isaac — e talvez isso fosse assunto para uma conversa longa, daquelas que só acontecem quando a vida desacelera — que eu também já fui pai de um menino da sua idade. E, como tantos pais de classe média, fiz o que pude (e o que não pude) para protegê-lo dos perigos do mundo. Construí cercas invisíveis, tracei rotas mais seguras, inventei maneiras de driblar o que me parecia ameaça.
Mas houve uma etapa crucial da vida dele em que falhei. Quando chegou a hora de escolher um caminho profissional, não me fiz presente e hoje tenho plena consciência da minha omissão. Não porque eu quisesse decidir por ele, mas porque temi interferir, temi conduzir, temi até aconselhar. E esse medo, Isaac, transformou-se num remorso surdo que me acompanha: um amargo remordimiento que só aumenta com o passar dos anos.
Queria poder voltar no tempo e reparar esse silêncio. Mas o tempo é uma porta que só abre para frente, nunca para trás.E é impossível não pensar em você, Isaac — no que você teria escolhido, no que teria ousado, no que teria descoberto. Estou certo de que faria boas escolhas, ainda que algumas delas talvez desapontassem seus pais, como inevitavelmente acontece com todo filho que cresce. Mas qualquer desencontro, qualquer equívoco, qualquer indecisão juvenil teria sido infinitamente pequeno diante do abismo da sua partida súbita, cruel, inaceitável.
Porque o direito de errar, de tentar, de começar de novo — o direito mais humano de todos — foi arrancado de você antes mesmo de que pudesse exercê-lo.
III.
Isaac, há algo que eu preciso dizer com todo o cuidado do mundo: o que você menos merece — e seria quase uma profanação da sua memória, uma violência nova imposta aos seus pais, irmãos e amigos — é uma reprimenda tardia, dessas que tentam julgar o irreversível com a frieza de quem nada arriscou. Uma lição post mortem sobre prudência, cautela ou “o que deveria ter sido feito”. Nada disso cabe aqui. Nada disso honra sua vida ou a dor dos que ficaram.
A verdade é que sua reação não me surpreende. Do alto dos seus 1,87 cm — esse corpo ainda em expansão, essa juventude que mal cabia em si mesma — não seria mesmo fácil sentir medo diante de outros adolescentes. Você correu atrás deles para recuperar o seu celular; é um gesto que mistura orgulho, senso de justiça, ímpeto juvenil. Um gesto que qualquer adulto honesto reconhece ter tido aos 15 ou 16 anos.
E, claro, Isaac: como poderia passar pela sua cabeça que alguém mais novo, menor, franzino talvez, fosse capaz de um ato tão brutal, tão covarde, tão absolutamente descabido? A violência gratuita não faz parte do vocabulário moral de um adolescente que cresceu cercado de afeto, de referências, de possibilidades. Ninguém está preparado para o absurdo.
Dias depois do ocorrido, conversando com os seus colegas que visitavam omemorial improvisado — aquele pequeno altar de flores, com a inscrição “Isaac vive”, velas e silêncio — perguntei se o Colégio Militar de Brasília oferecia algum tipo de orientação em defesa pessoal. Eles me disseram que não. E, pensando bem, não chega a surpreender: o CMB sempre privilegiou valores tradicionais da vida militar — disciplina, lealdade, camaradagem, coragem, honra, respeito.
Tudo isso é essencial, claro. Forja caráter, estrutura o espírito, dá norte num mundo que vive em vertigem. Mas como faz falta, Isaac, instruir adolescentes sobre o que fazer diante do perigo real, concreto, imediato. Ensinar não apenas valores, mas também instintos de autoproteção. Orientar sobre a diferença entre bravura e risco desnecessário; entre dignidade e exposição fatal.
E, ainda assim, mesmo se tivessem lhe ensinado tudo isso, não sei se faria alguma diferença naquela tarde fatídica. Porque, no fundo, não há manual capaz de conter a generosidade impulsiva de um jovem justo — nem de prever a crueldade imprevisível de um agressor.
E você faz uma falta imensa, irreparável.
Isaac, que esta carta te alcance onde quer que a luz te tenha encontrado.
Que ela te envolva como um abraço atrasado — mas inteiro.E que tua memória nunca se apague entre nós.
Com afeto, respeito e luto,
Pedro Santafé
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