urbanização

'Esqueletos' da capital federal: ruínas de prédios geram insegurança e prejuízos

Especialistas apontam que estruturas abandonadas são resultado de falhas estruturais e avaliam se a nova versão do PDOT será efetiva no combate a imóveis nessa situação

Antigos redutos da alta sociedade brasiliense, espaços que, antes eram sinônimo de progresso e planejamento, hoje viraram ruínas. Quem cruza Brasília todos os dias se depara com diferentes locais abandonados ou que sequer foram finalizados, seja por falta de recursos, seja por desinteresse dos proprietários. O resultado é insegurança, instabilidade estrutural e proliferação de vetores causadores de doenças.

De janeiro a novembro deste ano, a Secretaria DF Legal registrou 2.195 autuações a proprietários de áreas em situação de abandono — cerca de sete notificações por dia no Distrito Federal. Especialistas ouvidos pelo Correio apontam para falhas econômicas e de gestão, e avaliam se a nova versão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) será efetiva no combate aos 'esqueletos' da capital federal. 

Recentemente aprovado pela Câmara Legislativa (CLDF), o texto do PDOT orientará o crescimento urbano de Brasília pelos próximos 10 anos. Segundo Benny Schvarsberg, arquiteto, urbanista e professor da Universidade de Brasília (UnB), a revisão do documento apresenta instrumentos de política urbana a serem aplicados para combater a retenção especulativa de imóveis e promover a função social da propriedade, tais como o Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios (Peuc). 

No Peuc, o poder público obriga o proprietário de imóveis urbanos vazios ou subutilizados a parcelar, edificar ou dar uso ao terreno, para cumprir a função social da propriedade, combater vazios urbanos e evitar a especulação imobiliária, com sanções progressivas, como IPTU mais caro e até desapropriação. "Esses instrumentos podem contribuir para enfrentar o abandono, desde que haja uma estrutura técnica capacitada a implementar tais instrumentos e vontade política por parte do GDF", explica o pesquisador na área de urbanismo e planejamento urbano.  

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Também professor da UnB, o arquiteto e urbanista Frederico Flósculo avalia de outra maneira. Segundo o especialista, o PDOT não deve melhorar a situação, visto que considera o plano um documento "imobiliário", focado apenas em orientar investimentos da construção civil. "Faltam diagnósticos sobre o bem-estar da população e políticas voltadas ao desenvolvimento humano. Esse desequilíbrio reproduz abandono, colapso institucional e uma cidade que acumula mais ruínas do que equipamentos culturais ativos", defende o mestre em planejamento urbano e doutor em desenvolvimento humano. 

Insegurança

A reportagem visitou alguns pontos conhecidos pelo abandono, como a Torre Palace Hotel, no Setor Hoteleiro Norte; as instalações do que seria a Escola Superior de Guerra, no Setor de Mansões Isoladas Norte; o Clube do Servidor, no Setor de Clubes Esportivos Norte; e um templo islâmico inacabado, na 712/912 Norte. Os espaços acumulam lixo, vegetação alta, mofo, pichações, partes de paredes caídas e resquícios de incêndios. 

De acordo com Flósculo, o abandono de edificações, tanto no setor público quanto no privado, está associado ao colapso de negócios, à má administração, à incapacidade de manter atividades e a crises econômicas. "Brasília é uma cidade com economia artificial, sustentada majoritariamente pela máquina pública e não por uma base econômica diversificada, como outras capitais. Além disso, a falta de planejamento e a desconexão entre governo local, governo federal e desenvolvimento econômico geram instabilidade e descontinuidades", explica.

O templo islâmico, na 712/912 Norte, tem diversos problemas. Com um buraco na cerca, o lugar virou ponto de encontro de usuários de drogas e pessoas em situação de rua. Dentro, há entulho, lixo e água acumulada. O cheiro é de mofo. Escondida, uma placa informa "Centro Islâmico de Brasília". "Todos os anos, no período da seca, pega fogo aqui atrás. O tráfico acontece todas as noites e, como se não se bastasse, algumas pessoas invadiram o terreno e estão morando nos fundos há anos", denuncia um comerciante que atua próximo ao local e prefere não se identificar, por medo de represálias. "Já fui ameaçado", comenta. 

Segundo o comerciante, o templo em ruínas foi construído em 1972. Porém, cerca de seis anos depois, foi atingido por um incêndio. A reportagem tentou contato com o Centro Islâmico de Brasília, porém, não obteve retorno até a publicação desta edição.

No Setor de Mansões Isoladas Norte, quem se aproxima da beira do Lago Paranoá nota estruturas de concreto inacabadas e parcialmente escondidas pela vegetação. Ao redor, embalagens de comidas, garrafas de bebidas e até parte de um colchão. Aproximando-se do espaço, veem-se muros com cerca de 5 metros de altura, escadas subterrâneas e pichações. São as ruínas do que seria a Escola Superior de Guerra, cujas obras foram iniciadas em 1973.

O projeto, abandonado dois anos depois, pulou de órgão em órgão até chegar às mãos do Instituto Brasília Ambiental (Ibram), que prevê transformar o espaço no Parque Ecológico da Enseada Norte, aberto ao público. Questionada sobre a previsão para a revitalização do local e o estado de abandono, a pasta afirma que o GDF ainda não definiu um projeto específico para o parque, "criado e instituído como unidade de conservação". 

Já a Polícia Militar (PMDF) informou manter patrulhamento constante em locais com indícios de abandono, realizando rondas regulares e vistorias quando necessário. "As equipes atuam de forma preventiva e, sempre que acionadas, verificam denúncias, realizam abordagens e adotam as medidas policiais cabíveis para coibir práticas ilícitas e garantir a segurança da população", afirmou a corporação, em nota.

Intervenção

Em 2021, foi sancionada a Lei 6.911, que permite ao DF impedir que imóveis abandonados, públicos e privados, causem deterioração urbana, isto é, poluição e degradação ambiental, exposição da população a riscos de desastres, ocorrência de fatores causadores de zoonoses, retenção especulativa de imóvel urbano que resulte na sua subutilização ou não utilização, ociosidade urbana e aprofundamento de vulnerabilidades sociais. 

Mas para o urbanista Schvarsberg, a lei não está sendo aplicada. "Não há um setor organizado mapeando tais imóveis para notificá-los, dando prazo para apresentação de projeto de parcelamento, edificação ou utilização, em imóveis vazios ou subutilizados", explica. Para Flósculo, a lei não enfrenta o cerne do problema, pois não responsabiliza os verdadeiros gestores e proprietários pelo abandono. "A legislação é tímida, focada em proteger interesses imobiliários. Sem estudar as causas estruturais do abandono, a medida não pode ser aplicada de forma efetiva", reforça.

Ao Correio, a Casa Civil informa que a Lei 6.911 está em vigor. "No entanto, o acompanhamento de sua aplicação não é de responsabilidade da pasta. Para tratar de assuntos relacionados à aplicação da lei, a demanda deve ser direcionada para a Secretaria DF Legal e Defesa Civil, órgãos responsáveis pela fiscalização", disse em nota.

O DF Legal explica que é mobilizado após receber denúncias de lotes sujos, edificados ou não. Nesses casos, a pasta envia um auditor-fiscal até o local para tentar identificar o proprietário e, uma vez identificado, ele é notificado e tem o prazo de 15 dias para fazer a limpeza, cercar e construir a calçada em frente ao lote. Caso o responsável não cumpra com as exigências, pode ser multado em até 3,5% do valor venal do imóvel.

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No caso de áreas públicas, a pasta deve ser acionada via Ouvidoria, Administração Regional ou por meio do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT). Se o local estiver sendo usado indevidamente por terceiros para descarte irregular de resíduos e a pessoa for pega em flagrante, será atuada e multada conforme a legislação. 

Já a Defesa Civil diz atuar na análise de risco dos imóveis. "Quando há indícios de abandono ou deterioração estrutural, a subsecretaria pode ser acionada tanto por órgãos do GDF — como Administração Regional, DF Legal ou Corpo de Bombeiros — quanto por moradores da região, que podem registrar a solicitação pelos canais oficiais de atendimento", afirmou em nota.

Após o acionamento, a Defesa Civil realiza a vistoria técnica no local e avalia se a edificação oferece risco à segurança das pessoas. Quando necessário, são emitidos termos de interdição, orientações de segurança e comunicação aos órgãos responsáveis para providências complementares.

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A saga de um clássico de Brasília

Um dos edifícios em ruínas mais conhecidos de Brasília, o Torre Palace Hotel será demolido, agora em nova data: 25 de janeiro de 2026. A demolição foi recomendada pelo DF Legal. Em péssimas condições, o prédio está com sinais de infiltração na estrutura e desplacamento do revestimento. Segundo Marcos Cumagai, conselheiro do grupo que adquiriu o local, os preparativos para a implosão estão na reta final. "No local será construído um hotel de alto padrão", comenta Cumagai. 

Situação semelhante ocorre no Clube do Servidor, localizado na L4 Norte. Abandonada por anos, a área foi cedida ao Senado pela Secretaria de Patrimônio, em 2018, e passa por obras de revitalização para abrigar o Centro Cultural dos Poderes da União.

"Antes de ser cedida ao Senado, as invasões eram constantes. Foi preciso reforçar o cercamento e a segurança", comenta um vigilante. Em nota, o órgão federal destaca que "projetos executivos estão sendo elaborados e, no local, já foram iniciadas ações de limpeza do terreno e manutenção dos elementos estruturais que se encontravam em elevado estado de degradação". O contrato com a empresa de engenharia tem vigência até dezembro de 2026. 

A expectativa é que, com as reformas, os dois espaços apresentem uso efetivo e, no caso do futuro Centro Cultural dos Poderes da União, sirva positivamente à comunidade. Os urbanistas Benny Schvarsberg e Frederico Flósculo citam exemplos de sucesso: o Espaço Cultural Renato Russo, o Museu de Arte de Brasília, o Sesi Lab e o comércio criativo na altura da 504 Norte.

"É curioso observar que muitos dos locais ligados à cultura da cidade, como clubes, hotéis e academias, colapsaram ao longo dos anos. Isso diz muito sobre a necessidade de o governo adotar políticas urbanas baseadas no desenvolvimento humano, com programação cultural, esportiva e comunitária bem estruturada", avalia Flósculo.  (LM)