Festival de Cinema

Último dia de Mostra Competitiva Nacional traz única produção do Distrito Federal

Com direção de Roni Sousa, o curta Fogo Abismo retrata a infância do diretor na Vila rabelo, uma das maiores ocupações de Brasília

A Mostra Competitiva Nacional chega ao fim nesta sexta-feira (19/9). O longa da noite é Futuro Futuro (RS), do diretor Davi Pretto, que será exibido após os curtas Replika (MT), dos diretores Piratá Waurá e Heloisa Passos, e Fogo Abismo de Roni Sousa, único filme do Distrito Federal na principal mostra do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Último longa-metragem da Mostra Competitiva Nacional, Futuro Futuro, do gaúcho Davi Pretto, apresenta um período distópico, em que a inteligência artificial avança e provoca uma nova síndrome neurológica. Durante o processo de filmagem, no Rio Grande do Sul, em abril de 2024, a produção foi afetada pelas enchentes. A interrupção fez com que o uso de inteligência artificial (previsto desde o roteiro para criação de imagens) acentuasse ainda mais o filme distópico.

Ao Correio, Davi Pretto diz que o projeto teve início em 2017, como uma obra de ficção científica e especulativa, para abordar as múltiplas crises que vivenciamos: ecológica, urbana, política, e cognitiva. Mas o filme só veio a ser gravado em 2024. “Com as enchentes, a gente começou a ver tudo aquilo que a gente narra no filme se tornar realidade e isso foi uma coincidência trágica”, relata o diretor.

Depois de três meses parados por conta da catástrofe, o diretor viu no uso das inteligências artificiais uma solução. “Tivemos que nos readaptar. Então, as IAs, que já estavam no filme, se tornaram ainda mais presentes, inclusive como uma ferramenta irônica de terminar o filme. Tem muitas imagens feitas por inteligência artificial que eu mesmo fiz, que completam essa distopia que faz parte desde a concepção do longa”, afirma.

A narrativa, embora trate de diversas questões, é centrada em um homem amnésico que desperta em um futuro próximo, onde uma nova doença cognitiva, que afeta a capacidade de imaginar, se propaga. Em casos graves, leva à amnésia, como no caso do protagonista. Ele busca desesperadamente sua identidade e fica obcecado por um dispositivo de inteligência artificial recém-inventado, que promete auxiliá-lo, mas o conduz a uma tragédia ainda maior.

Em 2016, Davi esteve no festival com o segundo longa-metragem, Rifle, como roteirista e diretor, e comenta sobre o amadurecimento desde então. “Ao longo desses nove anos, muita coisa mudou. Especificamente este filme me ensinou a ser mais humilde. A enchente, com sua proporção apocalíptica, nos confrontou com a necessidade de sobrevivência. Ficamos três meses sem filmar, e por muito tempo duvidei que conseguiríamos finalizar o projeto. Aceitei essa possibilidade”, explica.

“Então, aprendi a humildade, a entender que o cinema, diante da crise climática que vivemos, pode ser pequeno, e, às vezes, é. E isso é crucial para refletirmos sobre a importância do cinema contemporâneo, como ele se adapta às transformações do planeta e como pode existir frente a esses desafios”,finaliza.

O ator potiguar Zé Maria interpreta K, protagonista que tenta escapar de contexto de forte divisão social, impulsionado pelo avanço da IA. Para ele, o filme evidencia "a questão da desigualdade, de uma sociedade se dividindo. Quem é rico, quem tem dinheiro, vai para um lado". Na trama, o personagem tem a memória apagada pela tecnologia, mas “ressurge", comenta Zé Maria. O ator começou a carreira em 2004 e teve trabalho exibido em Cannes, mas pela primeira vez participa do festival brasiliense “Era um dos festivais mais desejados por mim.”

Diretamente da capital

Única produção brasiliense da competitiva, o curta Fogo Abismo traz as memórias de infância do diretor Roni Sousa na Vila Rabelo, ocupação em Sobradinho II. Fotografias de família e arquivos são o ponto de partida para produção marcada por afeto e resistência. O curta revela a dor e busca pelo pertencimento de uma criança na periferia da capital.

Para Sousa, a Vila Rabelo “diz muito sobre o DF”, porque o coloca em confronto. “Ela mostra que nem tudo em Brasília é planejado. A Vila Rabelo e várias comunidades não foram planejadas, não estavam no plano de construção, e seguem uma rota diferente daqui de Brasília, um jeito de estar, um jeito de viver”, explica.

O curta de Roni parte de um processo íntimo de organizar arquivos familiares. Segundo o diretor, através das fotos, percebeu que a história da sua comunidade merecia ser contada. “Percebi nesse encontro com esses meus arquivos familiares que eles tinham muita potência, que eles mereciam se tornar filme e que outras pessoas deveriam assistir e conhecer”, destaca.

Fogo Abismo marca a estreia de Sousa como diretor. Para ele, a oportunidade de fechar a mostra em um dos festivais mais importantes do país é “muito psicólogo”. “Mostra que o esforço que fiz para fazer esse filme valeu a pena, e que as pessoas se interessam nessa história, que essas histórias podem ocupar esse lugar”, comenta.

Memória e identidade 

O curta Replika propõe uma jornada espiritual e meditativa sobre memória, identidade, perda e renascimento. O foco é a resiliência do povo Wauja do Xingu, no Mato Grosso, diante da tentativa de apagamento da história do grupo e a força da ancestralidade indígena. Piratá Waurá, um dos diretores do projeto, é fotógrafo, cineasta e professor Wauja; Heloisa Passos é diretora de fotografia e membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

“O filme fala sobre ancestralidade, sobre a luta do meu povo. Estar aqui é uma vitória”, afirma Waurá. Para ele, o trabalho busca aproximar pessoas da experiência indígena de estar no mundo, além de romper com estereótipos. “Às vezes contam as mentiras nas redes sociais, nas escolas, na faculdade sobre nós. Hoje, nesse momento, com os próprios indígenas fazendo esse trabalho de audiovisual, estamos usando uma ferramenta para contar as verdadeiras histórias”, avalia.

Replika aborda a destruição da Gruta Kamukuwaká, sagrada para os povos do Xingu, em 2017. Lá, desenhos antigos foram vandalizados e, como forma de reparação, uma reprodução autêntica dos registros foi feita. Heloisa Passos, então, foi convidada para filmar a inauguração da réplica. “Depois que esse material foi filmado, eu e o Piratá falamos: temos um curta-metrage. Pela importância do ato violento que aconteceu nessa gruta, e como filmamos o nosso olhar, esse lugar que é o livro de conhecimento do povo xinguano”, diz.

No sábado (20/9), a premiação terá início às 17h, seguida do filme de A natureza das coisas invisíveis, da diretora brasiliense Rafaela Camelo, que encerra a 58ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

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