CAMINHOS DO NASCIMENTO

Estradas são o acesso à saúde para gestantes de cidades sem maternidade

Em todo país, uma em cada quatro mulheres precisa sair do município onde vive para realizar o parto em um hospital do SUS. Deslocamento aumenta o risco de morte materna e neonatal

No Brasil, uma a cada quatro gestantes precisa sair da cidade onde vive para realizar o parto em uma unidade de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). A constatação é de uma pesquisa realizada pelo Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz) e publicada na revista The Lancet Regional Health – Americas em fevereiro deste ano. O Centro de Estudos Empíricos em Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que também desenvolveu pesquisa sobre o tema, aponta que entre as gestantes que precisam realizar o deslocamento entre cidades, cerca de 30% percorrem pelo menos 60km até a maternidade. 

Os pesquisadores consideram que as distâncias têm aumentado com o passar dos anos e o aumento do deslocamento interfere diretamente nas taxas de mortalidade neonatal e materna. O estudo da FGV revela que a probabilidade de mortalidade é 0,5 ponto percentual maior para crianças cujas mães viajaram para dar à luz. 

"O transporte é um elo crítico da atenção obstétrica. O aumento progressivo da mortalidade infantil com a distância ocorre porque trajetos mais longos podem atrasar o início do atendimento, especialmente em situações emergenciais. Além disso, o deslocamento pode acarretar estresse, desconforto físico e barreiras para o acompanhamento familiar. A literatura já aponta que gestantes enfrentam dificuldades logísticas, como falta de transporte adequado, custos financeiros adicionais e ausência de locais para repouso ou acolhimento próximo ao hospital. Em muitos casos, o deslocamento limita o acesso ao pré-natal, compromete o pós-parto e pode romper redes de apoio importantes no momento do nascimento", explica Valdemar Pinho Neto, coordenador do Centro de Estudos Empíricos em Economia da Fundação Getulio Vargas.

Maternidades em queda e distâncias em ascensão 

Levantamento realizado pelo Correio junto ao Ministério da Saúde demonstra que, em uma década, houve uma redução de 26,5% no número de estabelecimentos que registraram nascimentos em todo país. Enquanto em 2015 eram 3.223 maternidades ou hospitais aptos a realizarem partos, em 2025 passaram para 2.365. A pasta afirma que não há uma habilitação específica exigida para estabelecimentos de saúde realizarem partos de risco habitual no âmbito do SUS, exceto em casos de gestação de risco.

"Essa redução está relacionada à reorganização da rede obstétrica, com incentivo à regionalização da atenção ao parto e concentração dos nascimentos em unidades com maior estrutura e capacidade técnica. A estratégia busca assegurar partos mais seguros, com menor risco de complicações, e reduzir óbitos evitáveis, especialmente em casos realizados em unidades de pequeno porte sem suporte adequado", afirmou o Ministério da Saúde em nota.

https://www.correiobraziliense.com.br/webstories/2025/08/7219876-a-ilha-onde-e-proibido-nascer.html

O impacto da concentração de nascimentos em grandes unidades é evidenciado pelo aumento das distâncias percorridas pelas gestantes, conforme observa a pesquisa da FGV. "O estudo revela que gestantes que vivem em municípios mais vulneráveis percorrem distâncias maiores para dar à luz. Isso evidencia como a geografia da pobreza se traduz em barreiras concretas de acesso à saúde. Em municípios com menor renda per capita, menor IDH e piores indicadores de saneamento e infraestrutura, as distâncias até serviços adequados de parto são significativamente maiores. Essa relação entre desigualdade econômica e exclusão geográfica mostra que garantir o acesso equitativo à saúde exige enfrentar também as desigualdades socioeconômicas que vão além do setor saúde", observa o professor Valdemar Pinho Neto.

Anualmente, mais de 40 milhões de passageiros viajam de ônibus pelo país e, em que pese o transporte intermunicipal de passageiras gestantes seja uma realidade em todo Brasil, não existe regulamentação específica sobre o tema, conforme informou a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) ao Correio. Não há exigência de treinamento de equipes que atuam no transporte de passageiros nem regras específicas sobre limite de idade gestacional em permitida para embarque.

Anatrip - Gabriel Oliveira, secretário- executivo da Anatrip, explica que não há regras específicas para o transporte de gestantes, mas a lei estabelece que elas sejam tratadas como público prioritario

Gabriel Oliveira, secretário-executivo da Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiro (Anatrip) esclarece que a Lei nº 10.048/2000, em relação à assistência e acessibilidade, mas não fixa limites de gestação para embarque. "De modo geral, a conduta recomendada em caso de parto nos ônibus é acionar imediatamente o Samu ou outro serviço de emergência da região, parar o veículo em local seguro e prestar apoio à passageira enquanto aguarda atendimento. Como não há uma regulamentação unificada pela ANTT ou por legislação federal sobre esse tipo de situação, a resposta das empresas pode variar conforme a estrutura e os protocolos operacionais de cada uma”, informou.

Em 2020, uma jovem brasiliense teve um bebê dentro de um ônibus que saiu de São Paulo e seguia para Brasília. Quando passava por Uberaba (MG), o motorista foi informado que uma gestante estava em trabalho de parto dentro do veículo. Ele dirigiu até o posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Uma ambulância foi acionada, mas não houve tempo e a criança nasceu no ônibus. O motorista disse ao Correio, na época, que a situação gerou comoção entre todos os presentes. "Em mais de 28 anos de profissão, nunca imaginei vivenciar algo assim. Todos os passageiros se mobilizaram para ajudar e depois o clima foi de alegria geral", contou José. Após o parto, mãe e filha foram levadas para o Hospital Universitário Mário Palmério, na cidade do Triângulo Mineiro. O ônibus com os outros 14 passageiros seguiu viagem e chegou a Brasília por volta das 12h30.

O parto ocorreu em um ônibus operado pela Buser. A empresa presenteou mãe e bebê com um enxoval e ofereceu passagens vitalícias para as duas viajarem.

Divulgação/Buser - Segundo o CEO da empresa a criança e a mãe irão receber viagens vitalícias da Buser
 

No sul do país, um ano depois, o médico João Cabral, de 66 anos, saiu de Curitiba com destino a São Paulo em um ônibus interestadual da empresa Andorinha. O veículo passaria a noite na estrada e ele escolheu um assento bem na frente, para poder descansar. Em uma parada na estrada, desceu para ir ao banheiro e observou que uma das passageiras era uma mulher que já estava em estágio avançado da gravidez. Nada de estranho até o momento.

No entanto, quando o dia estava quase amanhecendo, ele foi despertado ao ouvir um homem chamando o motorista e informando que a mulher dele estava em trabalho de parto dentro do ônibus. O médico levantou e foi até o assento onde estava a gestante. Após se apresentar como profissional de saúde, observou que faltava pouco para o nascimento. No entanto, havia alguns sinais de alerta: além de ser fundamental uma pessoa para amparar a criança para que ela não caísse no chão, o bebê estava com o cordão enrolado no pescoço. 

O médico considera que ter um profissional no local foi essencial para garantir a chegada da criança nas melhores condições possíveis naquele momento. "A minha presença foi providencial. Quando a criança começou a sair, vi que tinha um cordão enrolado no pescoço, eu tirei o cordão que estava enrolado. Tirei, deixei aliviar, segurei a criança, ajudei a conduzir o parto, peguei o bebê com o pano e coloquei já em cima da barriga dela e fiquei esperando sair a placenta” narrou o médico. 

Ao chegar na rodoviária do Tietê, em São Paulo, o ônibus desembarcou os passageiros e seguiu para o Pronto-Socorro de Santana com a mãe e o bebê. 

Cabral se emociona ao lembrar dos detalhes do parto e sente que cumpriu o dever profissional e humano ao socorrer mãe e bebê. "Um sentimento de muita felicidade de poder fazer o que eu sempre quis, que era cuidar do ser humano, cuidar de uma vida, cuidar das pessoas. Foi Deus que me colocou naquele lugar pra ajudar aquela pessoa da melhor forma possível. Deus faz tudo certo, me colocou naquele lugar, se eu estivesse no andar de cima do ônibus eu não saberia de nada daquilo, aquela criança poderia ter sofrido um grave problema porque com certeza teria batido a cabeça no chão do ônibus, e ter tido um problema sério, eu me senti abençoado de ter estado ali. Me senti muito realizado”, conta o médico. 

Nas estradas, seja em carros ou ônibus, as gestantes podem contar com o apoio da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para acompanhar ou escoltar o veículo que conduz a grávida em trabalho de parto. Na rotina operacional, a PRF atua nos mais diversificados tipos de ocorrências e, entre elas, está o auxílio a gestantes em trabalho de parto. No cronograma da formação policial consta a disciplina de Atendimento Pré-Hospitalar, que fornece informações, orientações e protocolos básicos para que os agentes possam atuar em situações de emergência. O auxílio nesse tipo de ocorrência também ocorre por meio de escolta, quando a patrulha policial “abre caminho” para que o veículo no qual a gestante está sendo transportada, possa chegar de forma mais rápida e segura à unidade hospitalar. Para acionar a PRF é só ligar para o número de emergência 191”, informou a PRF em nota ao Correio.  

PRF/DF - Família que saiu de Águas Lindas de Goiás recebeu ajuda da PRF para chegar com rapidez ao Hospital de Ceilândia. O caso foi registrado em novembro de 2021 no Distrito Federal.

Maiores distâncias e menor qualidade nas estradas impõe desafios significativos

A pesquisa da FioCruz aponta que as distâncias nas regiões Norte e Nordeste são um ponto de maior risco para gestantes e bebês. Nessas regiões, as grávidas precisam percorrer entre 57km e 133km e enfrentam mais dificuldades de acesso entre 54 minutos e cinco horas e 55 minutos. A coordenadora do estudo, Bruna Fonseca, ressalta que nas regiões sul e sudeste os trajetos são bem menores e podem variar de 37km a 56km, durando entre 38 minutos e, no máximo, 52 minutos.

Além das distâncias, a qualidade das estradas nessas regiões impõe ainda mais cuidados e torna o transporte das grávidas mais complexos nessas áreas do Brasil. 

Conforme a Pesquisa CNT de Rodovias, as rodovias nas regiões Norte e Nordeste tiveram classificações do estado geral como ruim ou péssima acima da média nacional.  

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Estado Geral das Rodovias, segundo Pesquisa CNT

Brasil

26,6% ruim ou péssimo

Norte

40,1% ruim ou péssimo

Nordeste

27,8% ruim ou péssimo

Sudeste

22,1% ruim ou péssimo


Sul 

26,1% ruim ou péssimo

"No Nordeste, observamos a maior proporção de mulheres que precisaram sair de seus municípios para dar à luz em hospitais do SUS: cerca de 36%. Já no Norte, embora a proporção de deslocamentos tenha sido menor (16%), foi onde as distâncias e os tempos de viagem foram mais longos — em alguns casos, superando 290km e 30 horas de viagem. Isso evidencia dois tipos distintos de barreiras ao acesso: no Nordeste, há mais deslocamentos, possivelmente por centralização dos serviços; no Norte, a grande extensão territorial e a baixa densidade de serviços tornam o deslocamento particularmente desafiador”, detalha Bruna Fonseca, que liderou a pesquisa da FioCruz. 

O acesso ao direito básico da saúde pode ser ainda mais complexo para as comunidades tradicionais. Mulheres indígenas que vivem em aldeias enfrentam desafios para chegar até as unidades de saúde e, por isso, deixam seus lares com antecedência para aguardar a chegada dos filhos mais perto do hospital. 

A professora Tonica Homangadje Surui, de 32 anos, que mora na Aldeia Lapetanha, em Rondônia, tem dois filhos. O mais novo tem menos de um ano. Os dois partos foram realizados em um hospital público de Cacoal (RO), cidade mais próxima da aldeia. Para chegar ao hospital, foi necessário percorrer um trajeto de 40km em estrada de chão. Com o objetivo de evitar complicações, a estratégia é se deslocar até a Casa de Saúde Indígena (Casai) dias antes do parto. No caso de Tonica, ela foi para lá quando completou 8 meses de gestação. No local, as gestantes recebem alimentação, alojamento e podem levar um acompanhante.

Arquivo Pessoal -
Arquivo Pessoal -
Arquivo pessoal -

“Para ter o bebê aqui na aldeia é bem difícil. Porque como a gente está vivendo bem nessa sociedade de não indígena, a gente vai ganhar bebê no hospital. Então, a gente vai para a  casa de apoio que é Casa aqui em Cacoal. É, essa assistência que eles dão não é tão assim uma assistência tão grande. Então eu acho que deveria melhorar na assistência. Ter mais conforto no alojamento para receber o paciente, deveria melhorar isso”, reclamou a professora Suruí. 

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) informou que tem o papel de articular ações junto às instituições de saúde e aos equipamentos disponíveis. Assim sendo, a autarquia monitora os serviços de saúde nas esferas municipal, estadual e federal durante toda a gestação das mulheres indígenas e também avalia as ações desenvolvidas para o atendimento das populações indígenas. 

Caminhos para equidade e justiça social no nascimento 

As variações de distâncias e a escassez de maternidades em regiões específicas do país evidenciam a desigualdade social brasileira e impõe desafios diários para a população e para aqueles que precisam aplicar políticas públicas eficientes. Bruna Fonseca, coordenadora do estudo da Fiocruz, detalha os obstáculos na promoção de uma rede obstétrica ampla e capaz de atender a demanda real da população em todas as partes do país. “Embora algumas políticas busquem reduzir a distância de viagem, elas não definem referências específicas para o que é de fato a distância e o tempo aceitável para dar à luz. A regulamentação atual estipula uma taxa de 0,28 leitos obstétricos para cada 1.000 habitantes dependentes do SUS, mas existem diferenças regionais e é importante que as políticas deem conta dessa heterogeneidade dos territórios existentes no Brasil”, aponta Bruna Fonseca.

Na mesma linha, o professor que liderou a pesquisa da FGV aponta que a extensão territorial do país impõe desafios logísticos e de planejamento significativos. "A baixa densidade populacional em certas regiões dificulta a implantação de unidades especializadas próximas a todas as populações. Por isso, políticas públicas precisam considerar arranjos regionais inteligentes, que combinem infraestrutura de saúde, transporte e conectividade entre municípios, e, ao mesmo tempo, respeitem as particularidades socioeconômicas de cada território", reflete Valdemar Pinho Neto.

A pesquisa aponta para três frentes possíveis de expansão da rede para garantir os direitos reprodutivos e o acesso à saúde das gestantes. 

  • Melhor distribuição geográfica de serviços obstétricos especializados: Ampliar número e/ou capilaridade de unidades com capacidade para lidar com partos de risco e cuidados neonatais intensivos pode reduzir mortes evitáveis, especialmente nas regiões mais isoladas.
  • Fortalecimento da regionalização da saúde com base em critérios de necessidade e risco: É essencial organizar redes de atenção obstétrica integradas entre municípios, que garantam o encaminhamento adequado e planejado das gestantes, respeitando a complexidade do atendimento.
  • Investimento em transporte seguro e eficiente para gestantes: Sistemas de transporte sanitário adequados e ágeis são fundamentais para reduzir o tempo de resposta em casos emergenciais e garantir o acesso tempestivo aos serviços.

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