
A polêmica sobre o que muitos entendem como a privatização da orla do Lago Paranoá ganhou novo capítulo com o avanço do Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 84/2025, do Poder Executivo, que autoriza a concessão de uso de áreas públicas contíguas a residências (becos) nos Lagos Sul e Norte. A proposta divide opiniões de especialistas e moradores, que veem na medida uma forma de restringir o acesso ao lago. A iniciativa foi aprovada pela Câmara Legislativa e seguiu para sanção do governador Ibaneis Rocha.
A medida surge como uma resposta direta à decisão do Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT), que barrou, em julho de 2024, a tentativa de regularizar, via lei ordinária, a ocupação de centenas de "becos" e áreas verdes públicas. A lei anterior também era de iniciativa do Poder Executivo.
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Do total de 560 becos, são listados 230 passíveis de concessão no Lago Sul e 243 no Lago Norte. Outros 87 não poderão ser concedidos (28 no Lago Norte e 59 no Lago Sul). Um das alterações mais significativas do novo texto é a exclusão expressa das áreas lindeiras — as chamadas "pontas de picolé"— do regime de concessão.
O projeto define que a concessão se restringe "às áreas públicas intersticiais restritas ao espaço situado entre as dimensões dos lotes do mesmo conjunto". Essa mudança em relação à proposta anterior respeita a Escala Bucólica criada por Lucio Costa, protegendo as áreas verdes no final das quadras que dão acesso potencial ao Lago Paranoá.
O PLC também estabelece condicionantes para qualquer concessão. É vetada, por exemplo, a outorga do direito real de uso se a área for imprescindível para a circulação de pessoas e a proteção ambiental, listando situações específicas, como o acesso de pedestres a equipamentos públicos comunitários, áreas comerciais e institucionais, bem como paradas de transporte coletivo, acesso às redes de infraestrutura.
Quanto à contrapartida financeira, a proposta define que o valor pago anualmente pela concessão não será superior ao IPTU do imóvel vinculado. Os recursos arrecadados serão destinados ao Fundo Distrital de Habitação de Interesse Social (Fundhis).
Veja aqui o texto enviado ao Buriti, o mapa e a lista completa dos becos passíveis de concessão.
Riscos
Professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB) e membro do Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal (Conplan), Benny Schvarsberg avalia que é preciso garantir que a proposta não resulte no favorecimento de grupos específicos e na perda de patrimônio coletivo.
"O princípio que deve nortear o planejamento urbanístico é o de proteger o interesse público, e não o do proprietário. O PLC causa dúvidas se não acarretará 'privilégios para privilegiados', promovendo uma espécie de privatização de patrimônio público e áreas verdes fundamentais para o meio ambiente", afirma. Para Schvarsberg, é preciso observar ainda se o projeto não irá contra o conceito de Orla Livre, essencial ao desenho urbanístico de Lucio Costa e ao tombamento de Brasília.
A advogada Beatriz Kowalski, especialista em direito ambiental, afirma que os riscos associados ao fechamento e à regularização de áreas públicas próximas a corpos d'água devem ser sempre apurados tecnicamente, tendo em vista a importância de alguns locais. "Áreas de Preservação Permanente (APPs) têm função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas".
Kowalski também alerta para o impacto cumulativo das construções irregulares na impermeabilização do solo e no aumento do escoamento de poluentes. "Qualquer iniciativa voltada à regularização de construções irregulares já consolidadas deve ser precedida de estudos técnicos, para evitar prejuízos futuros à população e ao meio ambiente", ressalta. Segundo ela, é possível adotar medidas compensatórias e obras de infraestrutura que assegurem "a drenagem adequada, além de ações mitigatórias e compensações urbanísticas e ambientais".
O projeto também é visto com ressalvas por quem circula pelas regiões. "Acho essa iniciativa do governo bem ruim, de privatizar as áreas públicas da cidade, principalmente para o pessoal que pega ônibus por lá", diz o servidor público Luan Henrique da Conceição, 33 anos, frequentador do Lago Paranoá.
Rogério Ceni Silva, 22, também vê a medida com preocupação. "Passei em um beco hoje, mas não tenho tanto costume de ir. Eu vou lá pelo lazer mesmo, fico admirando a paisagem", conta Rogério. Para ele, o bloqueio dos becos representa o cerceamento restrição de um direito coletivo.
Regularização
Ao Correio, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh) afirmou que o PLC "representa um avanço ao trazer normas para regularizar uma questão que se arrasta há décadas" nessas regiões. Segundo a pasta, o texto foi elaborado a partir de "estudos técnicos e avaliações in loco, realizados com apoio da Secretaria DF Legal".
Conforme a pasta, o projeto não trata de áreas originalmente destinadas ao acesso público ao lago. "Muitas vezes, os becos estão localizados em quadras internas distantes do espelho d'água", prossegue. A secretaria reforça que a proposta proíbe a sobreposição em Áreas de Preservação Permanente (APPs).
A Seduh argumenta que "não há que se falar em privatização, porque os becos já estão fechados". De acordo com o órgão, o PLC apenas regulariza ocupações consolidadas, estabelecendo um marco temporal que "limita a regularização aos becos comprovadamente ocupados até a data da sanção da lei".
Colaborou Artur Maldaner, estagiário sob a supervisão de Malcia Afonso.

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