
Dom Casmurro, Grande Sertão: Veredas ou A Hora da Estrela. Por muito tempo, a leitura de clássicos da literatura brasileira foi associada a uma obrigação escolar e os livros encarados como difíceis, distantes ou impostos. No entanto, um novo movimento de leitura e ressignificação tem mostrado que a literatura brasileira ainda dialoga com o mundo atual.
Clarice Lispector (1920-1977) — que completaria 105 anos em dezembro se estivesse viva — se consagrou como um ícone cult da introspecção existencial, virou musa pop de memes e tatuagens, mas também de leituras profundas sobre linguagem, gênero e identidade. Entre jovens criadores de conteúdo literário nas redes sociais, o conteúdo da autora ainda bomba.
Atemporalidade e identificação
Clarice já havia revelado que as obras são mera questão de identificação, citando uma jovem que tinha seus livros como de cabeceira e um intelectual que não tinha entendido nada. Para Lara Andressa da Silva Carvalho, revisora de texto, escritora e mestranda em literatura, de 25 anos, é justamente isso que dialoga com as novas gerações.
“Embora haja quem diga que Clarice é hermética ou difícil de ler, vejo com outros olhos. Sua escrita, marcada pelo fluxo de consciência e introspecções, mais nos aproxima do que nos afasta da autora e de suas personagens”, argumenta. “Gosto particularmente do aviso que ela coloca no início de A Paixão Segundo G.H., e que reitera na entrevista que concedeu a Júlio Lemer para a TV Cultura: para ler sua literatura, não é necessário ser um grande literato, um professor ou um intelectual, basta ter a alma já formada, independentemente da idade.”
Lara ressalta que as palavras de Clarice atravessam o tempo, “como se fossem escritas ontem ou, inclusive, que estamos tomando um cafezinho enquanto andamos por sua mente, podendo voltar sempre que quisermos, pois a literatura nos permite isso.” Descrita como uma escritora do que é mais de interno em nós, Lara resume Clarice como um grito de manifesto — o que gera um incômodo no leitor.
“Somos uma geração de pessoas muito angustiadas. A busca por psicanalistas, o retorno à escrita em diários e o aumento no tratamento mental são um reflexo de uma realidade que nos impulsiona ao existencialismo. Clarice pega nos nossos ombros e balança para nos acordar e nos puxar para quem somos. Por que estamos no automático? Com Clarice, o leitor entra nas águas da literatura esperando encontrar o fluxo já conhecido, mas depara-se com uma força literária que dá o poder de aceitar ou não esse soco no estômago, de entender essa angústia que aperta o peito de muitos”, desabafa.
Foi aos 17 anos que Lara começou a ler Clarice, atraída pelos conflitos existenciais e subjetivos das personagens, que ainda refletem as questões das mulheres contemporâneas. “Estava em busca de uma escritora que trabalhasse de modo profundo sobre as questões das mulheres, e fui de encontro a Clarice – ou ela a mim – durante a leitura do conto Amor”, lembra. Citando Ana, a dona de casa, Joana (Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres), G.H. (Paixão Segundo G.H.) e Macabéa (A hora da estrela), Lara salienta que as vidas narradas pela autora ainda persistem.
Em meio às pressões por performance e produtividade, os discursos de “ser” e “sentir” de Clarice se destacam. Para Lara, tais palavras são um convite disruptivo à cultura de consumo rápido. “Essa pressa não tem espaço, é necessário que tomemos um fôlego. Seus livros pedem tempo. Há alguém por trás daquelas palavras, um indivíduo que existe na escrita e para além dela, mas que também viveu por ela e por conta dela”, declara.
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Com uma escrita que volta-se para si, muitas vezes em monólogos de fluxo de consciência, Clarice compreende gerações por meio de angústias, medos e esperanças. “É um adentrar em si e no texto, que vai para além das maquinações destes tempos que suspendem o próprio tempo”, acrescenta Lara. Embora escritas há mais de 50 anos, as palavras de Clarice encontram uma nova geração pela valorização dos sentimentos e da vulnerabilidade.
Angústia feminina
Crítica literária, historiadora da arte e autora do livro O engajamento poético em Clarice Lispector, Joseana Paganine explica o fenômeno de Clarice nas novas gerações como uma consequência contrária à aceleração digital. Considerada cânone, Clarice permanece se comunicando com o público em qualquer época, conforme a especialista.
Assim como tragédias gregas, as obras de Clarice permanecem vivas. “Ela é um refúgio de introspecção em um mundo onde até a intimidade é pública”, crava. Joseana define a popularidade da autora entre artistas internacionais como um avanço literário, impulsionado pela biografia escrita por Benjamin Moser — que fez sucesso nos EUA e chamou atenção para Clarice.
Apesar da popularidade dos livros, Joseana propõe que as obras devem ser lidas com esforço para que a reflexão proposta permaneça. “Ela vai muito a fundo na intimidade feminina. É uma mulher falando de mulheres, e isso vai ser sempre atemporal”, argumenta. Ao ilustrar mulheres comuns, mas profundas, pode-se relacionar com qualquer uma — nossas amigas, colegas de trabalho ou alguém passando na rua.
Clarice Lispector continua a atravessar gerações porque fala do que é mais íntimo e permanente em nós: a dúvida, o sentir, a busca por sentido. Em um mundo saturado de respostas prontas e superficialidades, sua literatura oferece pausa, profundidade e desconforto necessários. O fato de jovens leitores, artistas e influenciadores se voltarem à sua obra revela não apenas a força atemporal de sua escrita, mas também uma urgência coletiva por escuta interior e reconexão com a subjetividade — algo que Clarice sempre ofereceu, com coragem e beleza.
Ícone pop-literário
Referenciada por nomes consagrados como Sylvia Plath e Virginia Woolf, Clarice tem atravessado fronteiras geográficas e culturais nos dias de hoje. A cantora Olivia Rodrigo revelou à Vogue que carregava um exemplar de A Hora da Estrela na bolsa, comprado pela amiga Annie St. Vincent no Brasil enquanto viajavam em turnê de shows. “Esse é o livro que estou lendo agora. Estou marcando e anotando no livro inteiro. Ele tem palavras muito bonitas”, avaliou.
Lorde é outra do mundo pop que é adepta aos escritos de Clarice. Em entrevista ao Estadão, anunciou que algumas composições de seu novo álbum, Virgin, foram inspiradas em leituras que a incentivaram a realizar um retrato de si mesma — seja ele bonito ou não. “Quis ler mulheres autoras que tivessem aquele tipo de intensidade, sem remorso, fisicalidade e estranheza. Li Annie Ernaux, Rachel Cusk e Clarice Lispector”, afirmou.
No videoclipe de Penhasco, Luísa Sonza também referenciou a autora na performance. A gaúcha reproduziu cenas de Clarice na entrevista ao programa Panorama, da TV Cultura, em 1977. A atriz Cate Blanchett homenageou Clarice em seu discurso no Festival de Cinema de San Sebastián, na Espanha: “Pego coragem, de certa forma, de Clarice Lispector, uma escritora brasileira que é simplesmente genial, cujos trabalhos eu tenho lido recentemente. Ela diz que há certas vantagens em não saber.”
Diversão e Arte
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