CEILÂNDIA

Paulo Freire vive no Sol Nascente: Cepafre celebra 36 anos de alfabetização

Inspirado em Paulo Freire, projeto já alfabetizou mais de 16 mil pessoas e atua onde o Estado não chega: no coração da periferia

Amanda S. Feitoza
postado em 18/09/2025 09:48
Turma durante oficina de cinema e inclusão digital: ao final, cada grupo produz seu próprio curta-metragem -  (crédito: Cedido ao Correio)
Turma durante oficina de cinema e inclusão digital: ao final, cada grupo produz seu próprio curta-metragem - (crédito: Cedido ao Correio)

Setembro é um mês simbólico para a educação popular. No dia 2, o Centro de Educação Paulo Freire (Cepafre) completou 36 anos de atuação e 8 de setembro o mundo celebrou o Dia Internacional da Alfabetização. No dia 19, Paulo Freire completaria 104 anos. Mais que lembranças, essas datas são combustível para um projeto vivo: o Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia, que já alfabetizou mais de 16 mil pessoas, mantém acesa a chama da educação libertadora em uma das regiões mais vulneráveis do Distrito Federal.

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Antes mesmo do nascimento da nomenclatura “Educação de Jovens e Adultos”, o Cepafre já dava os primeiros passos. Segundo a primeira presidente e sócio fundadora da instituição, Maria Madalena Torres, tudo começou em 1986, no antigo “Núcleo Paulo Freire de Alfabetização de Adultos” com a participação de alunos do mestrado em Educação da Universidade de Brasília (UnB), totalmente baseada na metodologia do educador Paulo Freire.

Desde então, a parceria com a universidade continua até os dias de hoje. Madalena, uma líder histórica dentro do programa, compartilha que já no início do projeto, 1182 jovens e adultos foram ensinados a ler e escrever pelo projeto. Mas, logo tiveram que lidar com a extinção de órgãos educadores importantes. “Após o governo Collor extinguir a Fundação Educar e Rondon, as instituições ficaram desamparadas. Os estudantes pararam de participar por falta de recursos e incentivo”, compartilha a liderança. 

“Cefapre está onde o Estado não chega”

Segundo Madalena, ainda há cerca de 9 milhões de pessoas não alfabetizadas no Brasil, e muitas delas estão nas periferias do Distrito Federal. Trata-se de um dado alarmante, que, segundo ela, poderia ser ainda maior. A professora aposentada afirma que, até 2015, havia um quadro informativo com estatísticas de quantas pessoas sabiam ler e escrever na região de Ceilândia e Sol Nascente. No entanto, atualmente, a população e os educadores não têm mais acesso a esses dados de forma clara e acessível como antes.

"Não sei se há alguma intencionalidade por trás disso, mas fico entristecida ao elaborar um projeto sem saber o número real de pessoas não alfabetizadas em Ceilândia e nas regiões próximas", lamenta. Para ela, o governo deveria divulgar suas fontes de pesquisa de maneira mais clara e específica, contemplando jovens, adultos e idosos.

Madalena também ressalta que o Dia Internacional da Alfabetização não deve ser somente uma data simbólica. “O analfabetismo não é um problema que apenas o governo deve resolver. É preciso ação conjunta dos órgãos governamentais e dos movimentos sociais, para que se trabalhe de forma efetiva na superação dessa questão.”

Turma de alfabetização em atividade no Cepafre, em Ceilândia. O centro já formou mais de 16 mil pessoas.
Turma de alfabetização em atividade no Cepafre, em Ceilândia. O centro já formou mais de 16 mil pessoas. (foto: Cedido ao Correio)

Por conta dessas dificuldades de décadas atrás, que ainda é uma constante na vida de grupos de pessoas vulneráveis, para formar turmas, é necessário fazer um trabalho missionário: ir atrás dos possíveis estudantes em igrejas, centros e hospitais. Pedro Lacerda, atual presidente do Cepafre, explica que a abordagem é cautelosa. “Ser analfabeto carrega um estigma em nosso país. A abordagem tem que ser diferente: é uma conquista. Tem que falar ‘alguém conhece alguém que não teve a oportunidade de estudar quando jovem’”, diz Pedro. 

Além da estigmatização, há ainda a barreira da autoestima. “Quem não foi alfabetizado quando criança, tem uma baixa autoestima. Eles acreditam que não conseguem aprender, mas isso não é real, adaptamos as coisas e vamos atrás para que seja algo efetivo”, explica o educador. 

Quando conseguem formar turmas e atrair o público-alvo, é uma vitória. Para quem trabalha na organização compreendem que existem muitas razões pelas quais o estudante não estaria ali, mas muitos escolhem — e os educadores reconhecem o grande esforço. 

E por isso também, a importância do projeto. Como o Pedro Lacerda disse: “O Cepafre está onde o estado não chega. Funciona lá no Sol Nascente, onde está o trabalhador e as pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade.”

A iniciativa é permeada por dificuldades — tanto para captar os jovens, adultos, idosos e trabalhadores, mas também para mantê-los. Segundo o presidente, a grande maioria do público é composta por mulheres negras, com mais de 50 anos, que são mães, avós e, muitas vezes, se atrasam para as aulas — isso quando não deixam de ir — pela sobrecarga das atividades domésticas, trabalho e até mesmo por insegurança na região. “Mesmo que a turma seja próxima a casa, elas precisam deixar tudo pronto para poderem ir para aula”, destaca. 

Hoje em dia, a organização não se limita a educar somente jovens e adultos. Eles também letram idosos e educadores populares. “A grande beleza do Cepafre, é fazer uma atuação freiriana, uma educação libertadora, crítica, prezando a questão do coletivo. É só somos o que somos porque somos um coletivo de voluntários, associados, professores e educadores”, diz Madalena, orgulhosa. 

Turma durante oficina de cinema e inclusão digital: ao final, cada grupo produz seu próprio curta-metragem
Turma durante oficina de cinema e inclusão digital: ao final, cada grupo produz seu próprio curta-metragem (foto: Cedido ao Correio)

“Foram os primeiros passos para continuar meus estudos”

A cuidadora de idosos, Maria Lucimar Ferreira do Nascimento Carvalho, de 59 anos, participou do projeto em 2019, quando ainda trabalhava na área de serviços gerais. Ela conta que a chefe dela na empresa a incentivou a voltar a estudar, pois ela não sabia ler e escrever. Um dia, ao voltar do trabalho para casa, passou em frente à casa de um antigo professor, Goete de Borgonha. “Peguei o número dele e liguei. Perguntei quanto seria para me alfabetizar. Ele falou que não cobraria nada, tudo só dependia de mim”, relata. 

“Retornei à casa dele à noite. Chegando lá ele me deu um caderno e caneta, e sentamos em uma mesa. Nessa época a gente estudava na área da casa do próprio professor. Foi lá que eu aprendi a ler e a escrever”, conta. 

Maria conta que a metodologia envolvia dinâmicas com palavras geradoras, como “comida”, que serviam de ponto de partida para reflexões e atividades em grupo. “Aquele que já sabia mais um pouquinho ia ensinando o outro coleguinha”, lembra, destacando o espírito coletivo e o valor da aprendizagem colaborativa. 

Para ela, fazer parte do projeto foi gratificante. “É uma gratificação enorme. É um orgulho, é uma sensação de alegria, de vitória. Porque foi lá onde tive essa oportunidade, onde comecei e aprendi a ler e escrever. Foram os meus primeiros passos para dar continuidade aos meus estudos”, diz com emoção. 

Após o projeto, Maria afirma que sua vida mudou completamente. Além de aprender a ler e escrever, a cuidadora de idosos também aprendeu como se comunicar melhor. Mas, além disso, passar pelo Cefapre trouxe uma nova oportunidade de carreira para ela: hoje, ela está cursando fisioterapia. “Estou em uma sala de faculdade”, comemora.

Para quem se sente inseguro de voltar a estudar, ela deixa uma mensagem impactante: “Não tenha preconceito. A sala de aula é um ambiente de aprendizagem, de se identificar com outros jovens. Eu me sinto mais jovem depois dessa experiência”, diz. “A gente tem que parar e pensar que idade é apenas um número. Cheguei onde estou e vou alcançar muitas outras coisas.”

Maria Lucimar na sua formatura do Cefapre
Maria Lucimar na sua formatura do Cefapre (foto: Cedido ao Correio)

Muito além da alfabetização 

Atualmente, a ação está com oito turmas de alfabetização em curso em parceria com a Secretaria de Cultura e Economia Criativa. Uma vez por semana, quatro turmas de alfabetizandos participam de um cine debate, onde é apresentado um filme ou curta-metragem sobre os mais diversos temas que perpassam a realidade deles. “Pobreza, trabalho infantil e temas relativos a nossa cidade. Fazemos um debate, no que chamamos de círculo de cultura: que é a nossa sala de aula”, explica Pedro. 

As outras quatro turmas, também uma vez por semana, se aprofundam em linguagens do cinema, aprendem a fotografar, filmar e aprendem como utilizar dispositivos eletrônicos. “É um processo de inclusão digital e linguagem de cinema”, explica Pedro. “Ao final do processo, cada turma dessa produz um curta-metragem com cada história que eles queiram contar. É um projeto inédito. Nunca se fez algo assim. Não existe outra experiência do tipo no Brasil.”

Para o futuro, a ideia é sistematizar a experiência e aprimorar para mais alfabetizandos já no próximo ano. 

A instituição que completou 36 anos no último dia 2 de setembro já alfabetizou mais de 16 mil pessoas na região de Ceilândia e Sol Nascente e vive diariamente de doações e voluntariado. “Sempre nos pautamos pela dificuldade de conseguir dinheiro ou voluntários. Não sabemos como será o dia de amanhã para mantê-los”, afirma o presidente. 

Pedro reconhece que toda a existência do programa só é possível graças a Madalena. “Madalena é a alma do Cepafre. É uma história construída a várias mãos, mas ela estava à frente de tudo. Precisamos reconhecer o trabalho dela”, finaliza Pedro. 

Do caderno na mesa da sala à produção de curtas-metragens, a educação segue viva no Sol Nascente. E se hoje mais de 16 mil pessoas foram alfabetizadas, é porque, como Madalena diz, o coletivo segue sendo maior que a dificuldade. Como disse Paulo Freire: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, tampouco a sociedade muda sem ela.”

  • Maria Lucimar na sua formatura do Cefapre
    Maria Lucimar na sua formatura do Cefapre Cedido ao Correio
  • Turma durante oficina de cinema e inclusão digital: ao final, cada grupo produz seu próprio curta-metragem.
    Turma durante oficina de cinema e inclusão digital: ao final, cada grupo produz seu próprio curta-metragem. Cedido ao Correio
  • Turma de alfabetização em atividade no Cepafre, em Ceilândia. O centro já formou mais de 16 mil pessoas.
    Turma de alfabetização em atividade no Cepafre, em Ceilândia. O centro já formou mais de 16 mil pessoas. Cedido ao Correio
  • O trabalho é coletivo e baseado na metodologia freiriana.
    O trabalho é coletivo e baseado na metodologia freiriana. Cedido ao Correio
  • Alfabetizandos participam de cine-debate em Ceilândia. O método inclui reflexão crítica sobre o cotidiano
    Alfabetizandos participam de cine-debate em Ceilândia. O método inclui reflexão crítica sobre o cotidiano Cedido ao Correio
  • Turma durante oficina de cinema e inclusão digital: ao final, cada grupo produz seu próprio curta-metragem
    Turma durante oficina de cinema e inclusão digital: ao final, cada grupo produz seu próprio curta-metragem Cedido ao Correio

 

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