HISTÓRIA

Brasil concedeu pelo menos 80 anistias desde a Independência

Cientista político avalia que há uma tradição "cíclica de anistias no Brasil, um padrão que reflete a instabilidade política crônica do país"

As duas faces da anistia: em manifestações recentes, houve tanto o pedido do perdão a Bolsonaro quanto a manutenção de uma eventual condenação -  (crédito: Joédson Alves e Paulo Pinto/Agência Brasil)
As duas faces da anistia: em manifestações recentes, houve tanto o pedido do perdão a Bolsonaro quanto a manutenção de uma eventual condenação - (crédito: Joédson Alves e Paulo Pinto/Agência Brasil)

Em meio ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete réus por tentativa de golpe de Estado, parlamentares da oposição articulam a pauta da anistia "ampla, geral e irrestrita" aos envolvidos nos ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. O tema, no entanto, não é novidade na história do Brasil. Segundo a Agência Senado, o país já concedeu pelo menos 80 anistias desde a Independência (1822).

Ao Correio, o cientista político Alessandro Costa, professor de direito constitucional do UniCeub, avalia que há uma tradição "cíclica de anistias no Brasil, um padrão que reflete a instabilidade política crônica do país, onde o perdão legal é usado como válvula de escape para crises, em vez de resolução estrutural".

No período do Império, anistias foram concedidas para revoltas como a Confederação do Equador (1824) ou a Balaiada (1838-1841), servindo para pacificar elites regionais e manter a unidade monárquica sob Pedro I e Pedro II. Na República Velha (1889-1930), foram perdoadas insurgências como a Revolta da Armada (1893) e o Tenentismo (anos 1920), beneficiando militares e oligarcas.

Durante o Estado Novo (1937-1945), Getúlio Vargas usou anistias para integrar opositores, e na ditadura militar (1964-1985), houve a Lei da Anistia de 1979. Pós-1988, anistias continuaram para grevistas, policiais e até crimes eleitorais, mas com limites constitucionais.

"Essa frequência revela um Estado que prioriza a conciliação sobre a accountability, perpetuando ciclos de impunidade que enfraquecem instituições. Positivamente, anistias facilitaram transições em contextos da nossa história, como o fim do exílio de figuras como Jango (João Goulart) ou Brizola; negativamente, elas inibem a memória histórica e a prevenção de abusos, tornando o Brasil um 'país sem memória', como alertam historiadores. Em suma, essa tradição é um sintoma de fragilidade democrática, onde o perdão é ferramenta de poder, não de justiça, e deve ser reformulada para priorizar direitos humanos e transparência", frisa Alessandro.

"Estratégia política"

Para Alessandro Costa, o movimento pela anistia liderado principalmente por deputados do PL e outros partidos de oposição representa uma estratégia política calculada para mobilizar a base bolsonarista e testar a força do ex-presidente Jair Bolsonaro no Congresso, em um momento de vulnerabilidade jurídica para ele.

O projeto, que circula em pelo menos três versões, busca perdoar crimes cometidos desde 2019, incluindo os de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigos 359-L e 359-M do Código Penal), depredação de patrimônio público e tentativa de golpe, alcançando não apenas os invasores do 8 de janeiro de 2023, mas também o próprio Bolsonaro, com a restauração da elegibilidade.

"Em meio ao julgamento do ex-presidente Bolsonaro no STF, que retomou nesta terça-feira (9 de setembro de 2025) com votos como o do ministro Alexandre de Moraes pela condenação por tentativa de golpe de Estado, potencialmente somando mais de 30 anos de pena, essa proposta surge como uma contraofensiva política a uma questão eminentemente jurídica. Possivelmente inspirada no indulto concedido por Donald Trump aos envolvidos no ataque ao Capitólio em 2021, ela reflete uma tática de polarização, priorizada pela oposição no segundo semestre, mas que enfrenta resistência do governo Lula, que monta operações para barrá-la no Congresso", pontua o professor e cientista político.

"Historicamente, anistias no Brasil serviram para transições, mas aqui parece mais uma busca por impunidade seletiva, o que pode enfraquecer a accountability democrática e incentivar futuras rupturas institucionais. Se aprovada, inevitavelmente seria questionada no STF por violar princípios como a proibição de anistia a crimes contra a ordem constitucional", acrescenta Alessandro.

O advogado e doutor em direito constitucional Guilherme Barcelos cita que a anistia, como uma das modalidades de perdão previstas na Constituição de 1988, é inerente ao Congresso. O deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), presidente da Câmara dos Deputados, afirmou que não há nenhuma definição sobre a inclusão ou não, na pauta do plenário, do projeto que concede anistia aos acusados de golpe de Estado. Motta está ouvindo líderes partidários sobre o tema.

O advogado Guilherme destaca que há três modalidades de perdão: a anistia, a graça e o indulto. Quanto à anistia, a Constituição prevê alguns limites, vedando a concessão para crimes de tortura, tráfico de drogas, terrorismo e aos definidos em lei como crimes hediondos.

"Enquanto a anistia é prerrogativa do Congresso, a graça e o indulto são prerrogativas do presidente da República. A anistia, de igual maneira, se volta a fatos. Já a graça e o indulto se voltam a pessoas, determinadas ou determináveis. A graça é individual, voltando-se a uma pessoa determinada. Já o indulto é coletivo, voltando-se a pessoas determináveis", explica Guilherme.

Lei da Anistia de 1979

A Lei da Anistia de 1979 foi um instrumento importante na transição gradual da ditadura militar (1964-1985) para a democracia. O mecanismo jurídico anistiou crimes políticos cometidos entre 1961 e 1979, beneficiando tanto opositores (exilados, presos políticos e cassados, como Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes) quanto agentes do Estado (incluindo torturadores e responsáveis por desaparecimentos).

"Embora tenha sido a pavimentação de um caminho democrático, também permitiu a impunidade de violações de direitos humanos, levando muitos historiadores e cientistas políticos a encará-la como um pacto elitista que sacrificou a justiça pela estabilidade, preparando o terreno para a redemocratização, mas deixando feridas abertas na memória coletiva e levando a uma justiça de transição incompleta, já que os torturadores e assassinos em nome do Estado não foram responsabilizados", opina Alessandro.

Para o professor e o cientista político, no cenário atual, a discussão de anistia para os atos de 8 de janeiro difere em essência e contexto. Segundo ele, não se trata de perdoar perseguidos por um regime autoritário, mas sim autores de atos antidemocráticos em uma democracia consolidada.

"Diferentemente de 1979, onde a anistia era 'recíproca' para facilitar a transição, a proposta atual é unilateral, beneficiando golpistas que atacaram instituições, não vítimas de perseguição. Além disso, em 1979, o perdão visava reconciliação nacional; hoje, é visto como impunidade, potencialmente inconstitucional e sem o consenso social da época. Juristas argumentam que, enquanto a de 1979 foi um mal necessário para o fim da ditadura, a atual incentivaria a erosão democrática, sem paralelo histórico em regimes democráticos", finaliza.

Veja as principais normas sobre anistia no Brasil 

Império:  

  • Reinado de D. Pedro I (1822). Decreto de 18 de Setembro de 1822. Os anistiados foram pessoas que emitiram opiniões contra a Independência do Brasil.
  •     Reinado de D. Pedro II (1840). Decreto 244. Os anistiados foram envolvidos em revoltas regenciais, como a Cabanagem (1835-1840) e Sabinada (1837-1838).
  • Em 1844:  Decreto 342. Os anistiados foram os envolvidos nas Revoltas Liberais de São Paulo e Minas Gerais (1842).

  • Em 1844: Decreto 396. Anistiados: Envolvidos na Revolução Farroupilha (1835-1845) que depuserem as armas.

  • Em 1849: Decreto 576-A. Anistiados: Envolvidos na Revolução Praieira (1848-1850)

  • Em 1875: Decreto 5.993 Anistiados: Bispos e religiosos das dioceses de Olinda e Pará envolvidos na Questão Religiosa (1872-1875).

República:

  • Governo Hermes da Fonseca: 1910. Decreto 2.280. Anistiados: Marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata (1910).
  • Governo Prudente de Morais (1895): Decreto 310. Anistiados: Envolvidos em rebeliões da República até 1895, incluindo a Revolta da Armada (1893-1894) e a Revolução Federalista (1893-1895).
  • Governo Rodrigues Alves (1905): Decreto 1.373. Anistiados: Envolvidos na Revolta da Vacina (1904).
  • Governo Getúlio Vargas: 1930. Decreto 19.395. Anistiados: Envolvidos na Revolução de 1930.
  • Em 1934: Decreto 24.297. Anistiados: Envolvidos na Revolução Constitucionalista de São Paulo (1932).

  • Em 1945: Decreto 7.474. Anistiados: Envolvidos em crimes políticos (1934-1945), incluindo participantes da Intentona Comunista (1935)e adversários da ditadura do Estado Novo (1937-1945).

  • Governo Juscelino Kubitschek: (1956). Decreto legislativo 22. Anistiados: Envolvidos nas ações golpistas de novembro de 1955 (contra a posse de JK) e na Revolta de Jacareacanga (1956).
  • Governo João Goulart: 1961. Decreto legislativo 18. Anistiados: Envolvidos em crimes políticos desde 1934, incluindo a tentativa de impedir a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros (1961).
  • Lei da Anistia de 1979.

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postado em 10/09/2025 11:24 / atualizado em 10/09/2025 14:02
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