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Estilo Felca: entenda a moda andrógina que mistura elementos

Da capa de revistas ao palco, da alta-costura às ruas, a estética andrógina desafia estereótipos de gênero e celebra a liberdade de expressão na moda e na cultura

Recentemente, a aparição de Felca na capa da revista Elle evidenciou a fusão entre os traços faciais marcantes do criador de conteúdo em contraste com seu cabelo longo, destacando a estética andrógina. Androginia — do grego andros (homem) e gynos (mulher) — define a junção de elementos visuais femininos e masculinos, desafiando padrões tradicionais de gênero.

Vale ressaltar que os termos andrógino e andrógeno não significam a mesma coisa, sendo que o último refere-se a compostos hormonais responsáveis por características biológicas definidoras de macho e fêmea. A androginia também não remete à sexualidade em nenhuma de suas nuances, não se relacionando com atração sexual e/ou romântica da pessoa. Ela diz respeito apenas a aparência, traços corporais e estilo que se alinham simultaneamente ao estereótipo de masculinidade e feminilidade — podendo até causar certa confusão. 

Ao usar figurinos e maquiagens exuberantes ao longo da carreira, Ney Matogrosso também conseguiu o rótulo de andrógino nos anos 1970 — não necessariamente ligado a uma identidade de gênero específica. Em agosto de 2024, o artista revelou que sequer conhecia o termo à revista Marie Claire : “Andrógino foi a primeira palavra que me chamaram e eu nem sabia o que era. Fui ao dicionário descobrir. Talvez tenha sido a forma mais próxima que encontraram para me definir.”

A temática também foi abordada em um episódio de Todo Mundo Odeia o Chris, quando o protagonista se aproximou de Angel e enfrentou o dilema de ter vergonha do amigo. Julius aconselhou o filho com uma experiência própria: "Eu conheci um cara andrógino quando estava no colégio, muito antes disso virar moda. Ele é um dos caras mais valentes que eu já conheci. Todo mundo tirava onda com ele. Um dia eu estava voltando pra casa da escola e uns caras me pegaram. No meio da confusão, lá vem ele. Pink Bobby deu uma surra naqueles caras. Eu perguntei por que ele me ajudou, já que eu não falava com ele... E ele disse que não se importava com essas coisas. Mas é porque eu nunca falei mal dele. E depois disso, ficamos amigos."

Moda sem gênero 

Professora de moda e maquiagem, stylist, consultora de moda e maquiadora, Nina Stellato explica a androginia como uma expressão que combina elementos masculinos e femininos, muito vista na década dos anos 1970. Para a especialista, o maior representante da estética foi David Bowie. O cantor protagonizou uma cena famosa em entrevista a Russell Harty, em 1973, quando perguntado se o sapato de salto que usava era de mulher, de homem ou de bissexual. “São sapatos de sapatos, bobinho”, respondeu. 

Nina ilustra a estética andrógina na moda com a casa francesa Saint Laurent, pioneira do "le smoking”, que revolucionou o guarda roupa feminino no século XX com a possibilidade de calças e terno para mulheres — além da marca Chanel. “O andrógino traz muito do universo do gênero fluido e quebra barreiras em relação aos estereótipos de gênero”, crava. 

Alfaiataria, oversized (roupas largas), sapatos tratorados e gravatas são alguns elementos que compõem o guarda-roupa andrógino de Nina, que reflete que a estética, embora mais aceita do que antigamente, ainda enfrenta resistência. “Nos últimos anos estamos observando o crescimento do conservadorismo que vai contra essa estética. Mas existem ainda vários influencers que defendem e perpetuam esse estilo”, salienta. “Infelizmente, o grande público ainda tem preconceito pois definem roupa como masculino e feminino.”

Mesmo que relacionado com a moda unissex, o adrógino se difere. A especialista justifica que o unissex seria a ausência de gênero, sendo neutro, e o andrógino é a representação de dois gêneros misturados em uma identidade visual.

Fluidez e expressão

Krystie Ribeiro, produtora de moda e stylist, define a estética andrógina como uma linguagem visual complexa que transcende o simples vestuário, sendo definida pela união intencional de elementos tradicionalmente associados aos guarda-roupas masculino e feminino. “Não se trata de anular o gênero, mas de combinar códigos de vestuário para criar um visual que é fluido e complexo”, destaca. “Consiste em misturar e subverter códigos de vestuário, criando uma estética ambígua.”

Desafiando as normas de gênero, Krystie cita a psicóloga feminista Sandra Bem (1944-2014), que via a androginia como uma flexibilidade psicológica, e a filósofa Judith Butler, que a enxerga como um ato de “performatividade de gênero” que revela a natureza construída da nossa identidade. “Ao refletir a liberdade do indivíduo de se vestir de forma que represente sua identidade, essa estética celebra uma forma de auto expressão que não se prende a rótulos tradicionais.”

Segundo Krystie, ícones históricos como Coco Chanel, pioneira no uso de calças femininas nos anos 1920, e Yves Saint Laurent, com o icônico “Le Smoking”, ajudaram a consolidar a estética. No universo da música e do entretenimento, David Bowie, Prince, Grace Jones e Annie Lennox marcaram épocas ao adotar estilos andróginos. No Brasil, nomes como Madame Satã, Ney Matogrosso, Cássia Eller, Linn da Quebrada e Silvero Pereira exemplificam como a androginia se tornou uma ferramenta de expressão cultural e política. “A androginia brasileira reflete a diversidade do país e a busca constante por liberdade de expressão”, afirma.

A especialista detalha os elementos que caracterizam o estilo: paletas neutras, silhuetas equilibradas, oversized combinadas com peças justas, camisas, blazers, calças estruturadas e sapatos minimalistas. “A maquiagem equilibra visuais naturais com toques ousados, e os acessórios são funcionais e discretos”, acrescenta.

Apesar de avanços na moda de luxo, a stylist reconhece que o mercado de massa ainda enfrenta resistência por operar sobre um sistema binário. “Na alta-costura, a androginia já é consolidada, mas peças mais explícitas ainda encontram barreiras, principalmente em regiões conservadoras”, explica. Krystie destaca também o impacto das celebridades: “Harry Styles, Billy Porter e Jaden Smith mostram que é possível adotar esse estilo no cotidiano, democratizando a moda andrógina”.

Embora a androginia não defina a orientação sexual de alguém, ela tem sido historicamente utilizada na cultura LGBTQIAPN+ como uma forma de rebelião contra a heteronormatividade. Conforme a espexislaista, um homem gay com um estilo andrógino, por exemplo, pode estar rejeitando expectativas de uma masculinidade rígida, enquanto uma mulher lésbica que se veste de forma andrógina pode estar afirmando sua identidade fora dos padrões femininos estereotipados.

"Mas agora as pessoas querem um papel na sociedade. Elas querem sentir que têm uma posição. Querem ser um indivíduo. E eu acho que há muita busca para encontrar o indivíduo dentro de si mesmo”, desabafou Bowie.

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