RODOVIAS

Tragédia anunciada: Transporte clandestino apresenta riscos a passageiros

Mesmo com a redução do números de autuações em 2025, o assédio de motoristas e empresas irregulares a passageiros interestaduais persiste e preocupa o GDF e especialistas. Pirataria ocorre também nas vias do DF

Carros ocupam uma faixa inteira para embarcar passageiros -  (crédito: Luiz Fellipe Alves/CB/DA Press)
Carros ocupam uma faixa inteira para embarcar passageiros - (crédito: Luiz Fellipe Alves/CB/DA Press)

O transporte clandestino é um risco. Apesar de ser configurado como uma infração gravíssima, esse tipo de serviço representa uma alternativa perigosa para os moradores da capital e do Entorno, quando querem viajar em férias ou rever familiares em outros estado. Devido aos esforços das autoridades, o número de autuações dessa prática está diminuindo. De 2024 para 2025 houve uma redução de 74,37% (956 para 711, respectivamente). Mas esse percentual não camufla o real perigo dessa atividade. Especialistas apontam que a fiscalização e punição não são o único caminho para o fim da clandestinidade. Para mostrar como esse tipo de transporte atua, o Correio visitou alguns locais conhecidos por reunir ofertas de transporte clandestino. Entre eles, a área entre o ParkShopping e a Rodoviária Interestadual de Brasília. As viagens oferecidas por essas pessoas possuem valor muito menor do que as passagens vendidas dentro da Rodoviária de forma legal. 

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Na saída da Estação Shopping do metrô, os recrutadores se dividem em grupos, tendo até revezamento de horário para a captação de clientes. Aos gritos, eles anunciam o destino a cada transeunte que passa pelo local. Em uma abordagem anônima, o valor informado para uma viagem para Goiás (destino negociado) era de R$ 90, com data de escolha de acordo com o passageiro. Esse valor está 50% mais barato do que passagens convencionais em empresas de viagem regularizadas.

Além disso, o serviço irregular permite que o passageiro escolha um local de destino específico e marque a data, de acordo com a sua disponibilidade. Durante a consulta da viagem, o vendedor não revelou maiores detalhes sobre o tipo de veículo utilizado no traslado ou o ponto de partida do veículo, que só poderia ocorrer depois de fechar o negócio. 

Fábio Querino, da fiscalização da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), reforça que empresas legais são cadastradas na instituição e têm que cumprir vários requisitos de segurança e acessibilidade. "Para as viagens regulares, as empresas saem de terminais rodoviários e emitem um comprovante de embarque para o passageiro, garantindo a segurança do passageiro", afirmou.

O técnico reforçou que empresas clandestinas não fazem a manutenção adequada dos veículos, sobretudo, no fim do ano. "É muito difícil encontrar um ônibus clandestino que não apresente irregularidades. As mais comuns são, pneu careca, extintor vencido, para-brisa trincado (além da falta de seguro)", afirmou. Querino disse que muitas dessas empresas ilegais possuem poucos motoristas, culminando em pouco descanso para os condutores, aumentando o risco de acidentes. 

Uma alternativa que tem ganhado espaço são as plataformas digitais de viagens de ônibus. Apesar de agilizar a compra de passagens e estabelecer um contato com empresas de viação, há pontos de discussão, sobretudo, quanto à responsabilização quando algum direito é violado. Rosan Coimbra, especialista em direito do trânsito, afirma que, mesmo sendo intermediadoras, elas fazem parte da cadeia de consumo. "Se houver falha na prestação de serviço, elas podem, sim, ser chamadas a responder. Ser intermediadora não as isenta da responsabilidade", explicou. 

O especialista também comenta que, dependendo do caso, há possibilidade de responsabilidade compartilhada. "Quando há falha de informação ou venda de passagens de empresas irregulares, os tribunais entendem que a culpa é da plataforma e da empresa", esclareceu. 

Sem garantias

"Essas viagens são feitas em um cenário de alta vulnerabilidade", afirmou Rosan Coimbra, especialista em direito de trânsito. O advogado alerta que, quando o passageiro embarca em viagens clandestinas, abre mão de toda garantia de que tem direito por lei. "Seguro obrigatório, fiscalização estatal, responsabilidade objetiva da empresa, canais de atendimento, identificação do motorista, registro da viagem e mecanismos de proteção financeira em caso de incidente, são exemplos", completou. 

O advogado afirmou que, em caso de acidentes e outros infortúnios, o passageiro do transporte clandestino pode acionar judicialmente o motorista ou a empresa, mas advertiu que o processo pode ser longo. "Há barreiras operacionais relevantes, como a dificuldade de identificar o responsável, ausência de patrimônio declarado para indenização. Esses fatores dificultam a ação judicial e não garante penalização", alertou. 

Outro ponto de atenção mencionado pelo especialista é a chamada 'culpa concorrente'. "O Judiciário costuma ter o entendimento que o passageiro assumiu voluntariamente um risco evidente", disse. Essa ação, segundo Rosan, pode reduzir o valor da indenização, ainda que não elimine o direito completamente.

Lotações

Mas não é apenas em viagens interestaduais que os clandestinos atuam, nas vias do DF também assediam passageiros. Esses motoristas não são registrados em nenhuma plataforma, o que infringe o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Segundo o Detran-DF, os motoristas que realizam esse tipo de transporte ilegal, sem a devida autorização da Secretaria de Transporte e Mobilidade do DF (Semob), são autuados com base no artigo 231, inciso VIII, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) (confira quadro). 

Na parada de ônibus em frente ao ParkShopping, a reportagem flagrou a atuação de diversos motoristas irregulares. Entre carros e vans, o serviço é comum na região. Os riscos dessa prática são evidenciados pelo advogado Rosan Coimbra. "O passageiro entra em uma operação totalmente fora do ambiente regulado, sem qualquer protocolo de segurança validado pelo poder público. Isso eleva substancialmente o risco de acidentes, assaltos, falhas mecânicas e perda de rastreabilidade", disse. 

No período da tarde, com o horário comercial acabando, as pessoas se aglomeram e se organizam em uma única fila para esperar os clandestinos. A fila, inclusive, ocupa parte da pista, apresentando mais riscos para esses passageiros. Assim como as pessoas, os motoristas irregulares buscam levar o maior número de passageiros possíveis. Eles se entrelaçam e cortam os ônibus para oferecer os serviços e abordam os "clientes" com um modus operandi muito simples: anunciam o destino da viagem aos gritos. Após o anúncio, os passageiros começam a entrar nos veículos. O preço da viagem é definido no destino final ou durante o trajeto. Um dos passageiros clandestinos, que não quis ser identificado, afirma que sabe que é errado, mas acha mais confortável usar esse tipo de transporte. "É rápido e eu faço uma viagem sentado, bem mais confortável do que ônibus lotado", ressaltou.

Na Rodoviária do Plano Piloto, o ponto de atuação no local é a plataforma superior do terminal. Uma fiscal de plataforma relatou que as ocorrências desse tipo diminuíram, mas é recorrente. Durante a reportagem, diversas vans foram vistas realizando o desembarque de passageiros.

Uma moradora de Valparaíso que não quis se identificar afirmou que o transporte pirata é a opção viável que encontra para não se atrasar no trabalho. "Eu só pego a lotação porque o ônibus demora e sempre está lotado. Se eu depender de ônibus para trabalhar, vou chegar atrasada todo dia", argumentou. Ela utiliza conduções para ir e voltar do serviço e relata que o transporte público não supre suas necessidades. "Além do ônibus ter horário incerto, eu ainda tenho que descer no meio da rodovia, à noite, para pegar outro", acrescentou.

Pouca oferta

Professor de engenharia de tráfego na Universidade de Brasília (UnB), Paulo Cesar Marques da Silva disse que a existência desse "serviço paralelo" é consequência da falta de oferta de transporte público. "Não haveria razão para sua existência onde o serviço regular é adequado. Muitas vezes, a condição inadequada do serviço regular não é sua qualidade, mas o valor da tarifa cobrada ao usuário", comentou.

O professor reforça que a solução para o transporte clandestino está em ouvir a sociedade. "É fundamental trabalhar para atender a demanda da população. Essas estratégias costumam produzir resultados bem melhores do que as limitadas à tomada de decisões vinculados à lógica de mercado", assegurou. 

O secretário de Transporte do DF, Zeno Gonçalves, afirmou que é necessário investir em melhorias para os passageiros. "É importante que nós melhoremos a qualidade de transporte. O GDF tem feito a renovação da frota e ampliação da frota nos últimos anos. Além disso, o programa Vai de Graça, por exemplo, atraiu mais usuários para o sistema", pontuou.

Perigos

Paulo César Marques alerta para os riscos que esse tipo de transporte expõe aos passageiros. "Transportes regularizados e fiscalizados têm que atender requisitos mínimos, como estado de conservação dos veículos e habilitação dos condutores nas categorias apropriadas. Isso não é observado por quem presta serviços informais", afirmou. Além disso, segundo ele, os motoristas clandestinos contribuem para aumentar os índices de acidentes. "Os condutores de coletivos precisam ser habilitados na categoria D. Esse conduto faz treinamentos específicos para lidar com veículos e passageiros, fatores que não são observados nos serviços irregulares", observou.

Memória

Em outubro de 2023, sete pessoas morreram (cinco no momento do acidente e duas depois) e 17 ficaram feridas após o motorista de um ônibus, que estava vindo do Maranhão, perder o controle do veículo e capotar. O sinistro aconteceu após a fiscalização da Polícia Rodoviária Federal (PRF) encontrar irregularidades no veículo. As investigações mostraram que o dono da empresa supostamente fugiu da escolta realizada por uma viatura da ANTT. Na fuga, o veículo derrapou na pista molhada e capotou. A perícia indicou que, no momento do acidente, o veículo estava a 110 km/h.

Quadro: Infração de trânsito

Art. 231 – Transitar com o veículo efetuando transporte remunerado de pessoas ou bens, quando não licenciado para esse fim, salvo em casos de força maior ou com permissão da autoridade competente.

A infração efetuada por esses motoristas é considerada gravíssima com multa de R$ 293,47 e registro de sete pontos na carteira. Além disso, o motorista também enfrenta a remoção do veículo como medida administrativa. Segundo o Detran, as operações contra os transportes clandestinos acontecem de forma contínua, com apoio de tecnologia e patrulhamento ostensivo.

  • Van ilegal desembarcando passageiros na Rodoviária do Plano Piloto
    Van ilegal desembarcando passageiros na Rodoviária do Plano Piloto Foto: Luiz Fellipe Alves/CB/DA Press
  • Flagrante de transporte clandestino na Epia no fim de tarde: risco para os passageiros
    Flagrante de transporte clandestino na Epia no fim de tarde: risco para os passageiros Foto: Fotos: Luiz Fellipe Alves/CB/DA Press
  • Van fazendo transporte clandestino em frente ao Park Shopping
    Van fazendo transporte clandestino em frente ao Park Shopping Foto: Luiz Fellipe Alves/CB/DA Press
  • O motorista do ônibus perdeu o controle do veículo e capotou, matando cinco pessoas e ferindo outras 17
    O motorista do ônibus perdeu o controle do veículo e capotou, matando cinco pessoas e ferindo outras 17 Foto: Reprodução: CBMDF
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postado em 16/12/2025 05:30
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