
Na capital da República, três motoristas, em média, são multados por hora dirigindo alcoolizados. Mais que uma infração de trânsito, a má-conduta, que comprovadamente aumenta o risco de acidentes fatais, não para de crescer. Entre janeiro e outubro deste ano, o número de autuações da Lei Seca é 267% maior do que o registrado em 2009 (6.712), primeiro ano de vigência da legislação que proibiu o motorista de dirigir alcoolizado.
Passados mais de 17 anos da Lei 11.705/08, o poder público tenta coibir a alcoolemia ao volante, mas não consegue apresentar respostas amparadas em evidências para a seguinte pergunta: por que as infrações à Lei Seca não param de crescer? E mais: A legislação virou lei morta ou a fiscalização está mais eficiente? Enquanto isso, vidas são perdidas no asfalto diante da irresponsabilidade de homens e mulheres, que se acham capazes de pegar o volante, mesmo depois de beber.
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Tragédia
Dezenove de dezembro de 2008. A contadora Butitiere Fernanda de Assis, então com 26 anos, sentia uma dor no peito e no braço logo pela manhã. Foi ao médico, que apenas receitou um remédio para cessar os sintomas. O que ela sentia, na verdade, era instinto de mãe. Passou o dia falando com o colega de trabalho sobre como estava com saudades da filha e aguardava ansiosamente pelo fim do expediente para vê-la.
Por volta das 17h daquele dia, prestes a sair do escritório, passou no banheiro e, quando voltou para pegar suas coisas, o celular de Butitiere tocava e o ramal também. “Recebi a notícia de que Giovana estava sendo encaminhada ao Hospital de Base. Naquela hora, logo pensei: ‘Perdi minha filha’”, relata, com lágrimas nos olhos.
Giovana Vitória de Assis, à época com 5 anos, estava de mãos dadas com a babá, quando atravessava uma faixa de pedestres em Planaltina. Elas foram atropeladas por um condutor que dirigia alcoolizado. A cuidadora sobreviveu com sequelas, e Giovana perdeu a vida seis dias após o crime.
Hoje, Butitiere, 43, agradece pela oportunidade de ter convivido com a filha e gosta de relembrar as boas memórias. Atualmente cabeleireira e maquiadora, deixa uma lição para que outras famílias não passem pela mesma dor que ela. “Se você se ama ou ama o próximo, tenha consciência na vida. Viva intensamente, porque os momentos ficam. Mas entenda o seu valor e o do outro”.
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- Operação Lei Seca autua 49 motoristas por dirigirem alcoolizados
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Alta nas ocorrências
O especialista em trânsito Wellington Matos explica que, infelizmente, há um grande contingente de pessoas dirigindo sob influência do álcool no DF, o que pode ocasionar acidentes graves e até mesmo fatais. “Apesar de avanços da Lei Seca, existe uma cultura social que normaliza o consumo de álcool antes de dirigir, especialmente em eventos sociais, bares e festas. Uma parte significativa dos condutores continua a assumir o risco de beber e dirigir, o que aponta que a ideia de tolerância ao álcool ainda é forte. Essa constância tem a ver com a educação de trânsito, que deveria começar nas escolas mudando o entendimento do cidadão, ou seja, ao invés de fugir da fiscalização ele utilizaria mecanismos para beber e não conduzir. A fiscalização mais intensa pode evitar tragédias, mas não resolve o problema sozinha”, reforça.
Segundo o diretor de Policiamento e Fiscalização de Trânsito do Detran-DF, Danilo Lino, o número crescente de veículos transitando dentro do Distrito Federal, bem como o aumento de fiscalização dos agentes de trânsito nas vias, demonstram eficiência nas operações desenvolvidas pela corporação. “Ações do tipo blitz, patrulhamentos e missões conjuntas com outras Forças de Segurança reforçam a fiscalização de condutores que ainda insistem em conduzir veículo automotor após ingerir bebida alcoólica. A Diretoria de Policiamento e Fiscalização de Trânsito reforça que os motoristas utilizem, caso consumam bebida alcoólica, os serviços de transporte alternativos, como o Uber e táxi, o motorista ‘da vez’ ou o transporte público", ressalta.
Além disso, o Detran aponta que a variação dos números pode estar relacionada ao aprimoramento dos procedimentos internos e à modernização tecnológica implementada pelo órgão: “Entre essas inovações, destaca-se o Sistema Sober — nome inspirado na palavra inglesa ‘sober’, que significa ‘sóbrio’. A plataforma automatiza e otimiza a gestão das penalidades. Antes, o controle dos processos de suspensão dependia de procedimentos manuais e planilhas”.
Ilusão de controle
O bancário José Alberto, 40 anos (nome fictício, para preservar sua identidade), passou por uma situação desconfortável recentemente que o fez repensar a sua relação com álcool e volante. Há algumas semanas, foi parado por uma blitz após consumir cerca de quatro latas de cerveja, ele conta que se arriscou pois o trajeto era curto. “Estava ótimo, tendo em vista a quantidade que bebi. Para longos trajetos ou quando bebo muito, opto pelo transporte via aplicativo”.
O homem decidiu não realizar o teste pois imaginou que a quantidade de álcool ingerida seria detectada e não haveria tempo para “tornar imperceptível”. Ele afirma que se arrepende: “Apesar de eu ter boa resistência ao álcool, não vale a pena arriscar e ter problemas com blitz e CNH, além do que, há a possibilidade de não me sentir tão bem como costumeiramente e causar algum acidente”. “Em relação àquele dia, teria ido de carona ou Uber, eliminando o risco de ser multado ou ainda ter problemas maiores”, acrescenta.
Segundo o psicólogo e especialista em alcoolismo Lucas Cardoso, a ilusão de controle e a crença de que não haverá consequências são fatores que contribuem para que os condutores decidam beber e dirigir. “A negação faz a pessoa minimizar o risco, e a autossuficiência cria a falsa ideia de que ela consegue controlar o uso de álcool e dirigir sem consequências. Essas questões aumentam drasticamente os acidentes, fazendo do Brasil o maior produtor de álcool e líder em mortes no trânsito”, explica.
O profissional de saúde mental ressalta que a insistência em dirigir alcoolizado, mesmo sabendo dos riscos, pode envolver uma série de fatores. “Emoções negativas, dificuldade de interpretar a própria realidade, sentimentos de inadequação e outros aspectos subjetivos influenciam o comportamento. É importante reforçar que o alcoolismo é um transtorno de difícil identificação, diagnóstico e tratamento. Por isso, algumas pessoas acabam ingerindo álcool de forma compulsiva, perdendo a capacidade de discernir com clareza o que lhes faz bem ou mal ", destaca.
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Educação
Gerente de Ação Educativa do Detran-DF, Magda Brandão afirma que no fim do ano o problema se acentua. “As pessoas vão para festas, confraternizações após o trabalho, e voltam dirigindo após consumir bebidas alcoólicas”. Para a especialista, apenas a fiscalização não é suficiente. “A educação atua de forma preventiva. As equipes de policiamento e fiscalização já atuam no ato. Param o veículo. Então, o que levamos é a consciência. Precisamos investir nas campanhas de massa, com alto alcance midiático, para que a população entenda que de fato pessoas estão perdendo suas vidas no trânsito porque alguém resolveu misturar a bebida alcoólica e direção”, reflete.
Tragédias que poderiam ter sido evitadas
— Em 11 de novembro de 2025, Josivan da Silva Martins, 44 anos, morreu após ser atropelado por Claudiomir Soto Riva, 51, que conduzia um Corsa branco alcoolizado. O condutor teria tentado ultrapassar um caminhão perto do Café sem Troco, no momento em que Josivan e o filho dele, de 13 anos, caminhavam no acostamento. Na ultrapassagem, o motorista atingiu as vítimas. O pai, no instante do impacto, empurrou o adolescente para salvá-lo. O suspeito fugiu sem prestar socorro, mas deixou parte do parachoque para trás, o que ajudou a identificá-lo. Ele foi preso e foi indiciado por homicídio culposo.
— Em 23 de outubro de 2025, Bruno Correa da Hora Fernandes foi condenado a 22 anos e três meses de reclusão, além de oito meses de detenção pelo homicídio qualificado de Cledson de Caldas Souza, bem como por embriaguez ao volante. O crime aconteceu em Ceilândia, na véspera de ano-novo, em 31 de dezembro de 2023, quando o réu, após um desentendimento, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando sua morte. Bruno era policial militar e portava uma pistola de uso restrito sem autorização legal, em desacordo com determinação legal e regulamentar, por estar sob o efeito de álcool. Também foi confirmado que o autor conduzia um veículo alcoolizado, configurando o crime de embriaguez ao volante. A sentença ainda não transitou em julgado. A defesa apresentou recurso, que foi recebido sem efeito suspensivo.
— Em 2 de agosto de 2025, 14 fieis foram atropelados na Quadra 2 da Estrutural por Walisson Carvalho de Souza, de 32 anos, que dirigia embriagado, em alta velocidade e sem carteira de habilitação. As 14 vítimas estavam na calçada e na rua. Parte delas estava posicionada em frente a uma barraca de pastéis montada pela própria igreja. Com o impacto da primeira batida, a bacia de óleo quente usada para fritar o salgado caiu ao chão e queimou uma criança de 5 anos. Ele sofreu queimaduras de segundo grau em 40% do corpo e foi conduzido à Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte (Hran). Após fugir do local sem prestar socorro, ele se apresentou à delegacia e foi preso.
— Em 11 de fevereiro de 2025, Jefferson Gonçalves de Santana foi condenado a seis anos de reclusão em regime semiaberto por atropelar e matar o motociclista João Santana Souto Neto. O crime ocorreu em 30 de julho de 2022, por volta de 2h, na BR-060. Jefferson dirigia um veículo VW Polo quando colidiu contra a motocicleta pilotada por João. A vítima não resistiu aos ferimentos e morreu no local. Testemunhas e laudos periciais confirmaram que o réu estava embriagado no momento do acidente. A decisão ainda não transitou em julgado. A defesa apresentou recurso, que já foi encaminhado ao Tribunal de Justiça, e o caso segue em análise na segunda instância.
*Estagiária sob a supervisão de José Carlos Vieira

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