
Mulheres complexas, difíceis ou até definidas como desagradáveis costumam ficar de fora do olhar das premiações culturais quando representadas em obras audiovisuais. O Oscar frequentemente ignora as intérpretes dessas personagens, cuja relevância a Academia costuma subestimar devido a representação multifacetada, ambígua e, sobretudo, desconfortável. É o que propõe o artigo Oscar 2026: Será que a Academia vai abrir espaço para mulheres 'difíceis'?, publicado pelo The New York Times na última sexta-feira (19/12).
Conforme analisa o jornalista Kyle Buchanan, tais personagens continuam encontrando resistência na temporada de prêmios. A partir de exemplos concretos do cinema contemporâneo, ele argumenta que a Academia tende a valorizar mulheres que sofrem de forma contida e empática, enquanto reage com desconforto quando essas personagens expressam raiva, agressividade ou comportamentos socialmente incômodos.
O ponto de partida da análise é a atuação de Rose Byrne em Se eu tivesse pernas, eu te chutaria. No filme, a atriz interpreta Linda, uma terapeuta à beira do colapso, cercada por problemas que se acumulam: pacientes que não a escutam, uma filha que não come, um marido ausente em alto-mar e um apartamento prestes a desabar. Diante do agravamento da situação, a personagem passa a reagir com raiva — uma resposta que, embora justificável, intensifica os conflitos ao seu redor. Segundo Buchanan, trata-se do papel mais ousado de Byrne no cinema em anos, reconhecido com prêmios da Associação de Críticos de Cinema de Nova York e de Los Angeles, o que, em tese, a colocaria como nome certo na disputa pelo Oscar.
Ainda assim, o jornalista aponta a possibilidade de a atriz ser ignorada pela Academia, repetindo um padrão recente. Como exemplo, ele relembra o caso de Marianne Jean-Baptiste, premiada por críticos no ano anterior por Hard Truths, no qual interpretava uma mulher constantemente agressiva com desconhecidos e familiares. Apesar da força da atuação, Buchanan relata ter ouvido de votantes homens que simplesmente “não gostavam” da personagem, sentimento que culminou no menosprezo para com a atriz no anúncio das indicações.
A partir desses episódios, o jornalista sustenta que existe uma distinção clara na recepção das personagens femininas: quando a dor é expressa de maneira nobre e contida, ela se torna material valorizado pelo Oscar; quando essa dor se manifesta fazendo os outros sofrerem, a empatia dos votantes diminui drasticamente. Esse critério segue influenciando as chances de atrizes como Jennifer Lawrence e Amanda Seyfried, que também viveram mulheres complexas e desafiadoras em 2025.
No caso de Lawrence, Buchanan cita Morra, Amor, adquirido pela Mubi por US$ 24 milhões após exibição no Festival de Cannes. No filme, a atriz interpreta Grace, uma mãe recente que se sente invisível e não amada após o nascimento do filho, reagindo com comportamentos perturbadores, como se despir em uma festa infantil ou agredir o companheiro, vivido por Robert Pattinson. Embora considere a atuação arriscada e revigorante, o jornalista relata reações negativas de homens presentes à estreia, incluindo críticas diretas à personagem, vistas como rejeição à própria narrativa.
Uma situação semelhante aparece na análise de O Testamento de Ann Lee, exibido em Veneza, em que Amanda Seyfried interpreta a fundadora do movimento dos Shakers no século XVIII. A personagem, submetida a um casamento abusivo, passa a se enxergar como profeta e lidera um grupo religioso que prega o celibato. Buchanan destaca o desconforto gerado pela figura de Ann Lee em parte da imprensa, questionando se ela seria uma personagem “digna de apreço”. Para o jornalista, essa leitura ignora o contexto histórico e a complexidade da trajetória da personagem, reduzida por alguns a uma figura pouco simpática.
Em suma, a “agradabilidade” segue sendo um critério aplicado com muito mais rigor às protagonistas femininas do que aos personagens masculinos, que frequentemente escapam desse julgamento. Buchanan ressalta que mulheres insurgentes premiadas pelo Oscar costumam ter suas arestas suavizadas ao longo da narrativa, enquanto personagens como as de Byrne, Lawrence e Seyfried, quando cedem, o fazem apenas ao cansaço, sem oferecer uma catarse confortável.
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O contraste aparece na análise de Hamnet, em que Jessie Buckley interpreta Agnes, esposa de William Shakespeare. Embora também atravesse um período traumático de maternidade e ausência do marido, a personagem encontra uma forma de resolução emocional mediada pela arte e pelo luto compartilhado. Para Buchanan, esse tipo de desfecho mais palatável ajuda a explicar por que Buckley desponta como favorita, inserida ainda em um filme visto como forte candidato a melhor filme.
A crítica do escritor norte-americano é implícita: personagens femininas não precisam ser simpáticas para serem fascinantes. No entanto, a dificuldade da Academia em acolher mulheres que explodem, erram ou incomodam revela explicitamente, de acordo com Buchanan, um limite persistente na forma como o cinema premiado reconhece a complexidade feminina.

Diversão e Arte
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