DIA DO ROCK

Elas no rock: mulheres que desafiaram o machismo no palco

No Dia do Rock (13/7), mulheres brasilienses da cena contam como enfrentam obstáculos estruturais e celebram umas às outras

"Segurar uma na mão da outra é melhor para todas nós", diz Kaipora, guitarrista da Murderess - (crédito: Murderess / Cedido ao Correio )

Que Brasília foi berço da cena do rock na década de 1980 — e projetou nomes como o de Renato Russo no mundo todo —, todos os brasileiros já sabem. Prova disso é que a cidade é conhecida nacionalmente como a capital do rock. Neste domingo (13/7), é comemorado o Dia do Rock, data na qual vale ressaltar as mulheres que assumiram a cena e carregam o legado de vozes que foram por muito tempo reprimidas. 

Além de nomes consagrados como Pitty, Cássia Eller e Rita Lee, uma nova leva de artistas tem reforçado a presença feminina no rock nacional. O cenário candango continua sendo palco para vozes femininas que desafiam o machismo e reafirmam a potência do rock feito por mulheres.

Guitarra, voz e resistência

Para Andressa Munizo, vocalista e guitarrista do trio feminino Binarious, ser mulher no rock é um ato de resistência. Nascida em Minas Gerais e radicada em Brasília, Andressa nota que, mesmo entre os nomes mais celebrados do rock da capital, não há uma figura feminina de destaque.

Segundo ela, o acesso a oportunidades é limitado, e mesmo com experiência, era comum que as mulheres fossem subestimadas. “Já chegaram a me perguntar no palco se eu sabia o que um cabo P10 faz. É um cabo básico, que liga guitarra, baixo, tudo. E mesmo assim nos questionavam, como se não fôssemos profissionais”, relembra.

Apesar dos obstáculos, ela reconhece avanços. “A presença de mulheres, inclusive trans, tem crescido na cena, especialmente no underground e no punk. É muito bonito ver isso acontecendo, com letras pensadas para atingir o público feminino”, diz. No entanto, ressalta que a união ainda esbarra em rivalidades e na segmentação dos subgêneros. “Os homens estão sempre unidos, se ajudam, trocam equipamentos, dividem palco. Com a gente é mais difícil. Já tentamos criar grupos de minas do rock, mas sempre acaba acontecendo alguma treta e tudo desanda”, conta.

Ainda assim, há força quando o assunto é enfrentamento de abusos. “Quando um cara é machista ou comete assédio, a gente se une. Ninguém passa pano. Não importa quem ele seja, ele vai ser exposto”, afirma.

Ocupar um espaço no rock de Brasília, cidade marcada por bandas históricas formadas só por homens, tem um peso especial. “É muito gratificante saber que estou aqui, fazendo esse trabalho, construindo uma banda totalmente feminina e levando outras mulheres comigo. A gente quer ocupar esse espaço com voz, com arte e com perspectiva feminina. E isso é só o começo.”

Banda Binarious
Binarious (foto: Fotos: Kelvia Tiba; Henrique Jansen e Arquivo pessoal)

Punk hardcore 

Vocalista da Kidsgrace, Tuttis Souza percebe ter sempre de estar provando seu valor e o porquê de ocupar aquele espaço — e, muitas vezes, é um homem que leva o crédito no final das contas. Embora as mulheres façam presença no palco, Tuttis destaca que a situação ainda pode melhorar. 

“Escrever algumas linhas dessa história, que sempre foi um lugar dominado por homens, é muito importante pra mim, pois empoderam outras mulheres e meninas e as incentivam para que elas também vejam que elas podem também estar nos palcos seja tocando, cantando, ou produzindo”, comemora. Por saber como é difícil atuar na cena, Tuttis descreve que as mulheres se celebram, se divulgam e se consomem. 

Banda Kidsgrace encerra apresentações nesta sexta
Kidsgrace (foto: Arquivo)

Vanguarda feminina 

Cantora, compositora e arte-educadora, Mariana Camelo toca profissionalmente desde os 16 anos, quando sentia ter de provar que era tão capaz quanto homens que ocupavam o mesmo espaço. “Olhavam pra mim com desdém, com aquele ar de “será que ela dá conta mesmo?”. Muitas vezes eu era a única mina presente no line up dos eventos, e eu me sentia um peixe fora d’água”, lembra. 

Ocupando um cenário onde o rock é considerado patrimônio imaterial, Mariana descreve realizar um sonho todos os dias, ao mesmo tempo em que resiste. “Não é fácil sustentar um trampo autoral, ainda mais na conjuntura atual em que o mercado musical se encontra. Espero que nas próximas gerações mais mulheres e outras minorias ocupem este lugar, pois o verdadeiro significado do rock  and roll é a luta por igualdade e equidade.”

No underground, a cantora vê um apoio mútuo entre as mulheres da cena. “Existem projetos muito bacanas que fomentam essa prática, dando voz e visibilidade às minas da cena, como o festival Sinta a Liga (idealizado pela Tuttis) e o Feminichaos, que além de shows, tem oferecido oficinas de formação para mulheres musicistas”, conta. “Tem até grupos de WhatsApp que reúnem as manas, onde eventualmente rolam debates sobre a cena local e indicações para eventos.”

Mesmo que a presença feminina no rock tenha crescido nos últimos anos, Mariana salienta: “O que ainda falta é mais visibilidade para as mulheres. Tem muita mina talentosa escondida por aí!”.

Mariana Camelo
Mariana Camelo toca profissionalmente desde os 16 anos (foto: Yuuh Ribeiro)

Metal e feminismo 

Para Kaipora, guitarrista da Murderess, os desafios enfrentados como mulher na arte não são diferentes daqueles vividos em outros espaços sociais e profissionais. Desde o início, ela percebeu que precisava provar constantemente sua capacidade, enfrentando uma cobrança muito maior apenas por ser mulher. “A gente é meio que proibida de errar”, resume. 

A guitarrista explica que isso não é diferente no rock — um gênero cuja origem também passa por apagamentos históricos. “A gente não pode esquecer que foi uma mulher negra que inventou o rock and roll. A partir daí surgiram todos os subgêneros que a gente conhece. Então os desafios no rock são parte dos desafios de ser mulher numa sociedade.”

Segundo Kaipora, há hoje uma construção de irmandade entre as artistas locais, marcada pelo apoio mútuo, admiração, parcerias e colaboração. Ainda que nem todas estejam conectadas, o movimento existe e cresce a cada dia. Para ela, é essencial superar a lógica da rivalidade entre mulheres, ensinada socialmente como reflexo da escassez de espaço. “Segurar uma na mão da outra é melhor para todas nós”, afirma.

Mais do que criar nichos isolados, Kaipora acredita na importância de construir uma cena menos segregada, onde as mulheres não precisem se reunir em blocos à parte para conseguir tocar ou ser reconhecidas. O objetivo é claro: ocupar o espaço com respeito, voz ativa e inclusão, sem precisar se adaptar às regras de um jogo feito para excluí-las.

Murderess
Murderess (foto: Murderess)

União disruptiva 

Gaivota Naves, da banda Joe Silhueta, afirma que viver de música já é, por si só, um desafio. No contexto do rock, sendo mulher, a luta é ainda maior. “A gente convive com muito machismo, um ambiente muito masculino. Então, de alguma forma, a gente tem que se colocar, se fazer ser ouvida, se fazer ser respeitada”, argumenta. Em Brasília, a dificuldade é ampliada por um cenário que oferece pouco espaço para a cultura em geral.

Embora reconheça avanços, Gaivota acredita que o lugar das mulheres, assim como o de artistas LGBTQIA+ e negros, ainda é tratado como uma cota. “Ainda estamos abrindo esse espaço, exigindo que ele exista, batendo o pé para que ele aconteça.” Mesmo assim, ela se sente honrada em representar Brasília no cenário nacional e mostrar as várias facetas musicais do DF. “É super interessante poder fazer um som diverso, múltiplo, com referências de tantos lugares e colocar isso pra ser visto nacionalmente.”

Sobre a cena local, Gaivota é direta: “Primeiro de tudo, não existe uma cena local”. Ela aponta para um processo de precarização cultural que se agravou nos últimos dez anos. Com cada vez menos espaços para se apresentar — em parte pela aplicação rígida da lei do silêncio —, artistas autorais e de bandas covers enfrentam as mesmas dificuldades para sobreviver de arte no Distrito Federal.

Diante disso, o caminho tem sido a união. Mulheres do rock, do hip hop, do jazz, da MPB — todas se aproximam com o objetivo comum de resistir. “A gente tem tentado cada vez mais falar o nome umas das outras, se divulgar, se apoiar. Porque a cidade produz coisas incríveis, mas continua não oferecendo o espaço que a gente merece”, finaliza.

Mesmo com todos os avanços, o rock feito por mulheres em Brasília ainda é marcado por lutas diárias por espaço, respeito e visibilidade. As histórias relatadas revelam diferentes camadas de resistência. Unidas pela música e por uma urgência coletiva de transformação, essas artistas mostram que o futuro do rock não apenas inclui as mulheres, mas depende delas para ser mais plural, potente e verdadeiro.

 21/04/2023 Credito: Vitor Gripp/Esp CB/DA.Press. Cidades. Show da banda Joe Silhueta durante evento Picnik aniversario de Brasilia
Joe Silhueta (foto: Vítor Gripp/CB/DA.Press)

 

  • Mariana Camelo
    Mariana Camelo toca profissionalmente desde os 16 anos Foto: Yuuh Ribeiro
  • Trio feminino Binarious; elementos visuais
    Binarious Foto: Fotos: Kelvia Tiba; Henrique Jansen e Arquivo pessoal
  • Banda Kidsgrace encerra apresentações nesta sexta
    Kidsgrace Foto: Arquivo
  • A banda Joe Silhueta toca no Teta Cheese Bar
    Joe Silhueta Foto: Vítor Gripp/CB/DA.Press
  • Murderess
    Murderess Foto: Murderess
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postado em 13/07/2025 06:00
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